sábado, 29 de setembro de 2012

A Veracidade da Estrela



A veracidade da estrela
                                                                                 

            Ela, a mulher sem forma, entrou num sorvedouro de um buraco também informe, negro, com os mais cabeludos chavões de literatura barata, talvez cósmico até (pensou consigo mesma, sem conter um risinho de ironia). Cômico. Mas nada havia de estranho ou insólito nisso. Rodou o corpo agora não mais em direção à palavra, oca e redundante, que até então chamava poesia: mais um pedaço de papel pregado na parede. Nem isso. Tropeçou naquilo que pensou ser um degrau, daqueles que estão sempre no lugar errado, exatamente no caminho dos lunáticos, dos dispersos, dos... E não era bem um degrau, mas o tapete estendido de uma sarjeta sinuosa e desejável, lodosa e fedorenta como sempre. Despencou das nuvens e deu de cara exatamente no entulho da viela urbana, onde um monte de lixo reinava, ou melhor, se erguia como um trono. Sentou-se nele triunfante, coroada a rainha psicotrópica.
            Depois se foi, claudicante, sem lembrar jamais de versos, a não ser de leiras fundas sobre a terra fofa, pronta para o plantio do jardim patético. E você nem pense que vou contar o episódio. De fato, quero falar do olhar estrábico lançado sobre o monturo, olhar de quem vê a vida cheia de (como poderíamos dizer?)  "vida mesmo". Foi um olhar de sangue.
            E nunca mais pensou em nada.
            Tenho dito.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A palavra: variações sobre o mesmo tema



A palavra: variações sobre o mesmo tema

         O erro da palavra está em ser exatamente aquilo que é: som. Escrita, deixa de ser palavra, mas algo que talvez pudesse merecer outro nome. Vocábulo, talvez; mas também lembra voz, ruído. Melhor deixar palavra mesmo, com seu R rascante, triturante, incômodo. Porque toda palavra é absolutamente incômoda, especialmente quando dita sem muito pensar. E não é o que mais faço?
            Não deveria. Mas há outra alternativa? Quatro paredes acolchoadas e uma porta em que o estofamento esconde o aço. E aqui eu penso: as palavras jorram, já nem sei mais se de minha boca, ou apenas em minha mente.
            Um dia... numa tarde... Sei lá. Li isso ou apenas lembro de algo que realmente aconteceu. Creio que jamais vou saber. A não ser que aquela porta se abra e deixe entrar um pouco de ar nesse casulo. Claustrofóbico, creio que seria exatamente a palavra. Altamente claustrofóbico. Num dia... uma tarde... Isso volta sempre, e ainda  mais quando olho para aquele canto. Nem sei se direito ou esquerdo, ou qualquer coisa. Algo me prende as mãos. Poderia arranca-lo com os dentes? Certamente não.
Numa tarde... um dia. Isso é diferente, faz toda a diferença e o motivo pelo qual estou preso aqui. Vi, mas as cenas não surgem, só fragmentos de palavras.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Objetos



Objetos

                                                                  Para José J. Veiga


         Sua loja não era nenhum brechó. Mas no ramo dos objetos usados, ninguém realmente consegue

sobreviver apenas da venda de cacarecos preciosos, especialmente se falta capital e um bom ponto de

vendas. Mesmo assim ia remando, com algum lucro e uma certa elegância. Denominava-se, obviamente,

antiquário. Mesmo com tais fumos de aristocracia mercantil, precisava trabalhar muito para desencavar algo

realmente valioso do fundo de um baú ou de uma residência em demolição. De raro em raro, surgia uma

boa oportunidade e o dia parecia promissor.

         Iniciou-se com uma voz frágil e ofegante ao telefone. Feminina. Dava-lhe um endereço, na parte antiga da cidade e pedia a apreciação de todos os objetos da casa, a ser demolida para a construção de um edifício. Encontrou um bairro anteriormente elegante. Agora já desbotado e gasto, abrigava umas poucas casas em meio a conjuntos residências de classe média.
         Um solar art nouveau descascado e depauperado foi o que encontrou. Esperando-o na varanda, uma senhora magra e translúcida, envolta em echarpes diversas que, mesmo bizarras sobre o vestido negro de luto eterno, acentuavam o exotismo de um perfume antigo e penetrante.
         Após o rangido da porta, esperava encontrar uma sala apinhada de móveis, bibelôs empoeirados, quadros, espelhos, lustres de cristal. "Levaram quase tudo", ciciou a senhora. Sem queixas, olhar duro e moderado de alguém já acostumado a tratar de questões difíceis sem macular as luvas exageradamente brancas.
        
Não o convidou para sentar. E nem havia onde, pois os sulcos no chão e a desordem indicavam uma pilhagem completa. Certamente o neto, pensou. Uma bela herança, indiciada pelas paredes cuidadosamente decoradas e por um velho tapete persa, tão usado que já se desfazia em vários pontos.
         Quase deslizando, a velha senhora o acompanhou por um longo corredor envidraçado, de onde se podia divisar um jardim, destroçado e coberto de ervas-daninhas. Um quiosque arriado ameaçava desabar sobre uma fonte da qual já se levara a escultura que a encimava, certamente alguma deusa grega. Portas abertas deixavam entrever quartos vazios e empoeirados, trescalando odores de mofo e podridão, apenas disfarçados pelo exótico perfume da proprietária.
         Diante de um gabinete, nas mãos finas surgiu uma chave dourada, até então não percebida pelo antiquário. Certamente, ali ficava o último e único refúgio da proprietária, uma espécie de barricada para a pilhagem cotidiana. Num único relance, o antiquário pode perceber que ali fora empilhado todo um tesouro pessoal cuidadosamente protegido.
         Espelhos de cristal bisotado, quadros em molduras douradas, bibelôs de porcelana, talheres de prata adornados em ouro, porta jóias, tudo cuidadosamente alojados em prateleiras de mogno. Foram os objetos de cristal que mais o fascinaram: miniaturas de animais, bailarinas flutuando em transparências, pastores e pastoras enlevados, cálices tão finos que dava a impressão de se partir ao menor toque.
Recostada a uma parede, em tamanho natural, uma ninfa de mármore observava sua avaliação. Certamente esta não iria: pesada demais e difícil de vender. Esqueceu-a e seguiu adiante. Em minutos, deu o preço mínimo. A velha senhora aceitou imediatamente. Sacudiu os ombros. Uma estranha impaciência agora o atormentava; sem razão, pois tudo terminara como devia. Seu barco deixava-se levar pela correnteza do rio que ele não conhecia, e nem queria saber o que poderia esperar de um grande oceano.
         Dias depois, no primeiro sopro do inverso sobre um céu azul, sem cinzas, aconteceu de inadvertidamente passar por aquela mesma rua. Nem sinal da velha casa podia ser visto, apenas paredões de concreto e vidro. Na loja, buscou sinais palpáveis de que tudo aquilo não fora mais um desses delírios incompreensíveis, uma alucinação, um sonho confundido com mais um dia de trabalho cansativo. Mas nada havia em suas lembranças; e a vitrine de sua loja ainda exibia os objetos adquiridos a tão baixo preço. Deitou a cabeça sobre a mesa de trabalho e chorou como havia muito não chorava.
         No dia seguinte, voltou à mesma rua. Foi com a sensação de estar perdido num bairro estranho e exótico. Seus passos o conduziram para o endereço que, de tanto pensar na noite mal dormida, agora sabia de cor. Sem espanto, constatou que, bem no lugar onde encontrara o solar depauperado, agora existia um edifício de apartamentos de 21 andares. Atravessou as portas de vidro e viu-se diante de uma escultura: em tamanho natural a ninfa de mármore o observava. Não mais jovem, mas com os traços da antiga proprietária, sorria ironicamente.

Círculos na Água



Círculos na Água

Para Murilo Rubião


        O trampolim de concreto, sobre a piscina absolutamente redonda, suspenso como que livre sobre o espelho d’água lembra os ponteiros de um relógio eternamente parados ao meio-dia. Caminhar por ele, apesar de sentir sua solidez sob meus pés, parece dar uma sensação de leveza antiga: a mesma conferida pela flexibilidade de braços e pernas de vinte anos.
        Voltar aqui significa recuar; recuar e recusar o desejo de agora por aquele já esquecido. Dizem sempre: não há volta. Digo sempre: não há avanço.
        A casa e o jardim em torno da piscina mostram os claros sinais de abandono. Das vidraças amplas sobraram apenas cacos sobre lajotas empoeiradas. Não entrei. Não há fio de Ariadne que me conduza por aqueles labirintos nunca realmente conhecidos. Cada parede, corredor, quarto, sala, todos os compartimentos da casa sempre se bifurcam em minha mente. Não eram sólidos, apenas vislumbres de olhos jovens e traços impressos confusamente no cérebro.
        O mato devorou os canteiros. Algum galho de roseira seca ainda desponta aqui e ali em meio ao capim alto. Apenas os cactus, anteriormente controlados em seus nichos de pedregulho ganharam viço e avançaram pelos arredores. Do portão sobraram poucos ferros retorcidos, comidos pela ferrugem, que afiou ainda mais suas arestas cortantes.
        Estranhamente a água está limpa e azul e as minhas roupas, meus sapatos lustrosos de homem maduro contrastam com os lajedos do fundo; sequer sinal de presença de lodo que deveria estar depositado sobre eles.
        Imóvel a água camaleoa devolve o azul ao céu de verão, aberto e sem nuvens.
        Sinto a pele queimar, sem ardores. Os músculos tensos sentem o calor e relaxam pouco a pouco. Suspenso, ao meio-dia, espero que algo aconteça. Nada; somente uma nuvenzinha insignificante obscurece por alguns segundos a escancarada clareza da cena. Mal se fez notada e se foi.
        Certamente há brisa, mas não a sinto. Os pelos do meu corpo nu permanecem imóveis e a pele absolutamente insensível. Também não me movo eu. Alguém, que visse a cena, ao longe, poderia pensar em uma estátua muito branca, perfeitamente cimentada no extremo de um trampolim.
        Mas não existe ninguém. Há anos pessoas penetram ali. Talvez apenas um animal ou outro. Os olhos humanos, no entanto, deixaram ficar aquela imagem perfeitamente redonda, com seu ponteiro de concreto absolutamente congelado em um só dia, um só momento.
        A cena exige alguma movimentação. Flexiono levemente as pernas dormentes. Adquirem vida e se dobram mais. Os braços, até então inertes, esticam-se para trás. Novamente a imobilidade insustentável.
        Um relance, um fragmento de lembrança dispara o tiro. Então as pernas tomam impulso, os braços giram até se unirem em pleno vôo. Sei do salto perfeito e do rápido cortar da superfície plana e líquida.
        Mas no fundo da água, acocorado no útero do passado, também sei que sobre mim formaram-se círculos perfeitos, fazendo o conteúdo, subitamente movimentado, repetir o continente.
        O sol finalmente se desloca, levando consigo a projeção da sombra.