quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O nariz de um homem ridículo



O nariz de um homem ridículo
Para Aníbal Machado

(...) deixou cair os braços, começou a esfregar os olhos e a palpar: um nariz, realmente um nariz! E ainda por cima pareceu-lhe não de todo estranho. O horror se refletiu no rosto ... (Nicolai Gógol)

            Decepar uma parte de si mesmo? Sem dúvida era uma decisão drástica para quem vivera até então acomodado a sua vidinha sem graça e ao corpo mirrado. Nunca lhe incomodaram os ombros curvos e estreitos, a calvície precoce, nem as pernas finas a sustentar um tronco insignificante. Ele sabia a razão de sua inquietação. Atravessou a sala e olhou para o parque, em desalinho, carregado de folhar murchas e putrefatas. Fora seu último dia de trabalho. Explicara aos colegas que havia recebido uma herança deixada por uma tia quase esquecida. Embora modesta, lhe daria os rendimentos para uma aposentadoria humilde. A mentira o incomodava, era inexperiente na arte de mentir. Mas tinha que dar uma explicação aos colegas. Um funcionariozinho subalterno, sem grandes qualificações, surrado em seu velho terno de todos os dias, não podia se dar ao luxo de pedir demissão assim tão repentinamente numa época de desemprego. Mas era impossível contar-lhes a verdade: não suportava mais os olhos se outros sobre seu nariz.
            Até então, sequer notara aquele apêndice enorme se sobressaindo em meio aos olhos miúdos e meio opacos.  Ao fazer a barba, porém (lembra bem o dia!) deparara com aquela excrescência obliterando-lhe o olhar de soslaio. Desde então, não passava um minuto sem notar a ponta rotunda de seu protuberante nariz.
            Na rua, não se misturava mais à massa anônima como antes. Se, até ali, a multidão era um jardim perfeito pelo qual atravessava seguro e inócuo, agora, naquele último mês, sentia a sensação perversa e estranha de ser observado a cada passo. De qualquer maneira levaria a cabo sua intenção fosse qual fosse o preço. A força desta convicção  deixava-o intrigado; a decisão era inabalável, mas sua mente inquisidora não atinava para uma justificação razoável para o ato.
            Fora de casa, não levava mais seu corpo, mas era carregado pela imensa protuberância nasal, sempre mais à frente, como uma trombeta do apocalipse. Na praia, senti-o queimar-se, avermelhar-se e, aos poucos, tomar todas as cores de seu torso, não somente do rosto, que se amiudava ainda mais.
            Deixou a barba crescer, mas o matagal inóspito e rebelde em nada contribuía para sua aparência. Pelo contrário, o bigode ralo e negro ressaltava ainda mais o órgão estranho, frisava os nódulos desarmoniosos e avivava as espinhas que não cessavam de brotar por toda parte, como se o estúpido ainda quisesse crescer um pouco mais. Cortou a barba, mas não o ressentimento.
            Passou a faltar ao serviço, e quando batia o ponto trancava-se num mutismo sombrio. Na tela do computador via sempre o reflexo refletido. Lá estava seu inimigo, seu algoz, que agora não apenas se mostrava, mas parecia adquirir vida. Em fungadelas e espirros, esforçava-se para esboçar um sorriso irônico pelas narinas.
            Seria, talvez, que depois de quase 40 anos de vida precisava provar a si mesmo, um borra-botas, que ele era alguém; que era capaz de ter coragem e decisão, cometendo um ato tão terrível e irrevogável. Apanhou a faca.