Objetos
Para
José J. Veiga
Sua loja não era nenhum brechó. Mas no ramo dos objetos usados, ninguém realmente consegue
sobreviver apenas da venda de cacarecos preciosos, especialmente se falta capital e um bom ponto de
vendas. Mesmo assim ia remando, com algum lucro e uma certa elegância. Denominava-se, obviamente,
antiquário. Mesmo com tais fumos de aristocracia mercantil, precisava trabalhar muito para desencavar algo
realmente valioso do fundo de um baú ou de uma residência em demolição. De raro em raro, surgia uma
boa oportunidade e o dia parecia promissor.
Iniciou-se com uma voz frágil e ofegante ao telefone. Feminina. Dava-lhe um endereço, na parte antiga da cidade e pedia a apreciação de todos os objetos da casa, a ser demolida para a construção de um edifício. Encontrou um bairro anteriormente elegante. Agora já desbotado e gasto, abrigava umas poucas casas em meio a conjuntos residências de classe média.
Um solar art nouveau descascado e depauperado foi o que encontrou. Esperando-o na varanda, uma senhora magra e translúcida, envolta em echarpes diversas que, mesmo bizarras sobre o vestido negro de luto eterno, acentuavam o exotismo de um perfume antigo e penetrante.
Após o rangido da porta, esperava encontrar uma sala apinhada de móveis, bibelôs empoeirados, quadros, espelhos, lustres de cristal. "Levaram quase tudo", ciciou a senhora. Sem queixas, olhar duro e moderado de alguém já acostumado a tratar de questões difíceis sem macular as luvas exageradamente brancas.
Não o convidou para sentar. E nem havia onde, pois os sulcos no chão e a desordem indicavam uma pilhagem completa. Certamente o neto, pensou. Uma bela herança, indiciada pelas paredes cuidadosamente decoradas e por um velho tapete persa, tão usado que já se desfazia em vários pontos.
Quase deslizando, a velha senhora o acompanhou por um longo corredor envidraçado, de onde se podia divisar um jardim, destroçado e coberto de ervas-daninhas. Um quiosque arriado ameaçava desabar sobre uma fonte da qual já se levara a escultura que a encimava, certamente alguma deusa grega. Portas abertas deixavam entrever quartos vazios e empoeirados, trescalando odores de mofo e podridão, apenas disfarçados pelo exótico perfume da proprietária.
Diante de um gabinete, nas mãos finas surgiu uma chave dourada, até então não percebida pelo antiquário. Certamente, ali ficava o último e único refúgio da proprietária, uma espécie de barricada para a pilhagem cotidiana. Num único relance, o antiquário pode perceber que ali fora empilhado todo um tesouro pessoal cuidadosamente protegido.
Espelhos de cristal bisotado, quadros em molduras douradas, bibelôs de porcelana, talheres de prata adornados em ouro, porta jóias, tudo cuidadosamente alojados em prateleiras de mogno. Foram os objetos de cristal que mais o fascinaram: miniaturas de animais, bailarinas flutuando em transparências, pastores e pastoras enlevados, cálices tão finos que dava a impressão de se partir ao menor toque.
Recostada a uma parede, em tamanho natural, uma ninfa de mármore observava sua avaliação. Certamente esta não iria: pesada demais e difícil de vender. Esqueceu-a e seguiu adiante. Em minutos, deu o preço mínimo. A velha senhora aceitou imediatamente. Sacudiu os ombros. Uma estranha impaciência agora o atormentava; sem razão, pois tudo terminara como devia. Seu barco deixava-se levar pela correnteza do rio que ele não conhecia, e nem queria saber o que poderia esperar de um grande oceano.
Dias depois, no primeiro sopro do inverso sobre um céu azul, sem cinzas, aconteceu de inadvertidamente passar por aquela mesma rua. Nem sinal da velha casa podia ser visto, apenas paredões de concreto e vidro. Na loja, buscou sinais palpáveis de que tudo aquilo não fora mais um desses delírios incompreensíveis, uma alucinação, um sonho confundido com mais um dia de trabalho cansativo. Mas nada havia em suas lembranças; e a vitrine de sua loja ainda exibia os objetos adquiridos a tão baixo preço. Deitou a cabeça sobre a mesa de trabalho e chorou como havia muito não chorava.
No dia seguinte, voltou à mesma rua. Foi com a sensação de estar perdido num bairro estranho e exótico. Seus passos o conduziram para o endereço que, de tanto pensar na noite mal dormida, agora sabia de cor. Sem espanto, constatou que, bem no lugar onde encontrara o solar depauperado, agora existia um edifício de apartamentos de 21 andares. Atravessou as portas de vidro e viu-se diante de uma escultura: em tamanho natural a ninfa de mármore o observava. Não mais jovem, mas com os traços da antiga proprietária, sorria ironicamente.
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