quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Do Livro O Centro do Círculo


Aos Infernos

 

Desço mais um passo, Beatriz,

em direção ao nada. Na treva

a única luz que vejo são as imagens

que se partem em fragmentos hostis,

com farpas, espinhos e voragens,

que seguem a torrente que me leva.

 

Já vislumbro o barqueiro sombrio,

à espera, com os remos aos ombros,

enquanto alucino passados de brilhos,

flocos leves, efêmeros, entre escombros.

Estranho passageiro sou. No úmido frio

da cratera em que entro ouço ainda estribilhos.

 

São ecos, talvez, do passado, d'antanho,

em que a dor se assemelhava à alegria

e o canto feliz de então, agora parece

lamento e angústia, lamento tamanho,

que a memória turva me envia

para alentar algum resto, aquele que perece.

 

Entre os dedos carrego a moeda,

cunhada com o metal da indiferença.

Pagamento mesquinho, para a travessia

tão esperada, ansiada após a queda

nas sombras vazias, sem esperança,

nem mesmo de um beijo em lápide fria.

 

Beatriz, ouço Cérbero já furioso

com a lenta caminhada, após o desembarque

titubeante. Falta-me a coragem, ou esperança

de recuperar, mesmo que ansioso,

o brilho de um olhar vacilante,

ou o falso amor de uma velha criança.