domingo, 28 de outubro de 2012

Acelerador



Acelerador

                                                                                  Para Patrícia Melo


            Os sapatos ficaram um pouco sujos. Sentou-se no carro e limpou-os rapidamente com um pano velho, não, não era um pano velho, mas a camisa de gajo. Que fazer com aquilo? Queimar, enterrar, jogar no freezer? Fechou a porta do carro e acelerou. Dois postes de luz adiante deu de cara com um lixão. Ótimo. Rasgou o tecido, sujou-o um pouco mais no chão enlameado e jogou-o no monte de porcarias. Um roupa velha a mais entre outras, outras e mais outras.
            Estava mais leve. Acelerou.
            Havia pouco movimento. Sintonizou o rádio do carro numa rádio que só tocava sucessos dos anos 60. Uma verdadeira peça rara: sobretudo o motor, de ronco suave e contínuo. No volante, sentia o sangue correr veloz nas veias, enquanto o velocímetro subia e se estabilizava em 120.
            Dois dias depois, em alguma delegacia de bairro, os policiais estariam às voltas com mais um cadáver. Certamente usariam máscaras para resgatar o presunto já meio decomposto, já meio comido por formigas. Chegariam ao Instituto Médico Legal meio enjoados e não teriam coragem de comer nada até o dia seguinte. O mais corajoso dos policiais talvez pedisse um hambúrguer na esquina, e depois, às escondidas, vomitaria no banheiro.
            Acelerou ainda mais.
            Escolhido cuidadosamente o restaurante, pediu uma lagosta e comeu devaneando, rememorando as mãos em garra no estraçalhar da morte. Um belo gesto. Em casa, dormiu sem precisar de sonífero, estava exausto e flutuante e não sonhou, de início, apenas escorregou pela noite e pelos lençóis bem esticados, meticulosamente bem esticados. Já de madrugada, ainda em torpor, entrava nebulosamente num salão. Era uma mistura de cheiros, álcool, fumaça, suor. Depois, uma catacumba, em que os ecos soavam como canto de igrejas, espalhando-se sobre homens adormecidos sobre suas mulheres. Uma puta retocava-se ao espelho, enquanto mulheres nuas e seminuas bebiam seus últimos goles de vinho e tragavam longamente uma bagana do último cigarro. Acordou suado. Tomou um banho. Um toque de trombeta extemporâneo o saudava além da janela. Um relâmpago imenso rompeu pela vidraça e tomou o quarto inteiro. Como que atropelado, entrou no dia.

            As ruas desertas de um bairro de classe média. Os pneus chiando no asfalto e o desejo aumentando, os dentes rangendo uns contra os outros, a boca cheia de saliva. Tinha que ser... Deixou o carro vagar molemente, lento como as tragadas no baseado roubado de um pivete. Só um passeio pela madrugada. Não, mais, mais, mais.
            Na esquina, os faróis bateram no muro alto. Sujo, velho, cheio de musgo. Puta que pariu, tem alguém ali. Iluminado, a casal olha e foge. Passa por eles lentamente, sorrindo. Devolvem-lhe o sorriso, cúmplices.
            De novo molemente. Dá a volta no quarteirão. Certamente, não têm mais que quinze anos, os dois de cabelos até os ombros, chapados de bagulho, indefinidos e imprecisos sob a luz tangencial do farol e a escuridão da noite suburbana, quase no meio da pista, exatamente no centro de seu desejo.
            Acelerou.
            O choque, barulho, um grito feminino de susto e depois o silêncio.
            Muitas ruas desertas depois parou no acostamento, agora estava calmo. No carro, nenhum arranhão; apenas um pingo de sangue que limpou com o lenço. Descobrira uma nova forma de matar. Engrenou novamente. Entrou na rodovia devagar, depois de ter circulado por toda a cidade deserta e fria. Foi acelerando devagar, mantendo o controle do volante, ganhando velocidade.
            Nem vinte minutos gastara. Apanhou a mulher no bar, deixou-a insatisfeita no centro e foi para casa dormir. Estava cansado e não lembrava de nenhum lugar propício à caça naquela hora da manhã.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O preço



O preço

                                                                                  Para João Silvério Trevisan


            Beijou-o com paixão simulada. Pôde sentir a evidência do prazer nos músculos retesados do rapaz. Sorriu. Faltava um bom tempo para o momento exato. Foi com ele que aprendeu a beber mijo.
            Ainda era domingo. Quatro horas antes chegara ao bar com o corpo um pouco doído, com algum ardor de sol e exercícios puxados. Bastou um uísque para que renunciasse a qualquer dor. Em pouco, lá estava ele, a seu lado, escondendo a ansiedade por trás de um olhar cínico. Ainda na lembrança a cena do banheiro. Foi nesse minuto que o batizou. Seria sempre anônimo, mas teria de chamá-lo por algum nome. Em tom de brincadeira, nomeou-o. Entre risos, o garoto tentou falar, mas tapou-lhe a boca, para evitar que mencionasse qualquer Carlos, João, Roberto ou Renato entre tantos que certamente usaria na noite.
            “Não importa.”
            Agora, sentia entrega naquele corpo. Maquinalmente, massageou-lhe as costas. Sem paixão. Revia, sim, as cenas anteriores, num balanço completo da atuação. Perfeita, pois rendera dividendos.
            Via-se pagando a conta e arrastando o rapaz pela mão para dentro carro, controlando com voz firme o alvoroço e descontrole do adolescente. Sem palavras ou toques rodaram pela cidade meio deserta, até encontrar o restaurante certo. Lagosta, vinho, velas. E olhares.
            Em dado momento, um pé roçou o seu, por baixo da mesa. Truque velho e sem imaginação. Estava demonstrando ser mais fácil e simples do que imaginara. Faltava um bocado de verniz e malícia elaborada àquela criatura que não se construíra, apenas repetia os cacoetes de outros prostitutozinhos de bares e ruas. Cada gesto ou olhar possuía significado exato, claro, objetivo. Nada de ambigüidade ou sedução, apenas a mensagem simples para qualquer comprador ávido.
            A cada gesto inútil, o garoto anônimo  parecia mostrar mais ansiedade. E a ansiedade batia na superfície polida do espelho que havia se tornado seu rosto. Lançando a rede sem sucesso, o rapaz  acabava por enredar-se ainda mais nas malhas de uma armadilha maior e mais eficaz. Debatia-se, apenas.
            Não, daquela vez, não mencionaria o preço.
            Não disse. Entrou docilmente no motel, pedindo licença, quase desculpas por estar ali. Sentado na ponta da cama havia tentado ainda um olhar sedutor. Ignorado, silencioso, acompanhava o ritmo de blues com os pés mal plantados sobre o chão encerado. Num repente, levantou-se, devorou sua boca. Não aquele mero roçar de lábios e línguas profissional e artisticamente elaborado.
            – Devagar...isso...
            Não era pressa, mas fome. E assim foi. E saciou-se. Ou quase.
            Ainda nu, tirou da carteira duas notas de cinqüenta e jogou-as sobre a mesa de cabeceira. Sabia ser um insulto, sabia estar rasgando algumas páginas de romance cor-de-rosa, sabia estar mutilando, perfurando, destruindo com os dentes como qualquer outro predador noturno da cidade-punhal. Sabia. Vestiu-se. “Amanhã  passo na loja. Eu pago a conta na portaria.”
            E fechou a porta, sem olhar.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Dois Dentes



Dois Dentes

            Para Sérgio Santanna


            Almoçava. Era tarde. Um dos últimos clientes. Nem por isso tinha pressa. Pelas janelas envidraçadas daquele vigésimo andar, não via mais a cidade, só nuvens, só céu chumbo. Os outros edifícios estavam muito abaixo, quase só casas de bairro antigo. Do outro lado da sala uma mulher o fitou, e seu rosto exageradamente maquilado lhe pareceu menos duro à luz de velas. Deveria ter sido uma mulher atraente, para quem gostasse daquele tipo de brinquedo de porcelana; mas sua beleza era tola, nas roupas de lantejoulas reluzentes e metálicas, na blusa decotada e saia de veludo.
            Por que pensava nisso? Talvez porque, além dele, apenas o lavador de vidraças era visível no salão enorme. Um do lado de dentro, outro do lado de fora. E sem qualquer cuidado, o sujeito fazia seu serviço sobre uma plataforma de madeira pendurada em uma roldana. Nem cinto, nem nada.
            O filé estava macio, mas faltava algum tempero. Comeu-o lentamente, observando o homem e sendo observado. Sendo observado... Encarou-o. Também lentamente o homem foi afastando a plataforma para a janela ao lado, diante de um corredor escuro. Levantou-se.
            Ninguém na sala, ninguém o via. De que maneira faria aquilo? Diante do corredor, a porta do banheiro. Parou diante dela, tirou um cigarro e foi até a janela. Olharia para fora como quem não quer nada, cuspiria no vazio? Talvez apenas ficasse parado, fumando como quem não quer nada, soltando a fumaça no ar quente da tarde morna, simulando pensar na vida, na morte da bezerra, na política nacional, nos problemas existenciais que não tinha? Nada, apenas isso:
            “Tem fogo?” Inclinou-se para a chama do isqueiro. Um empurrão seria suficiente, mas perigoso. Não havia tempo de voltar para a mesa. Num relance, viu a corda que segurava a tábua por baixo. Apenas um prego mal colocado impedia que ela corresse. Simulando apoiar-se no parapeito da janela, achatou o prego em direção à madeira. A vida por um prego, a melhor metáfora da fragilidade. Confiante nos músculos, na força, na agilidade, o homem trabalhava despreocupado, certo de terminar o serviço, esperar o ônibus, observar a noite chegando pelos vidros empoeirados da condução, certo do banho, certo do jantar mesquinho mas reconfortante, certo do sono e do novo dia. A vida por um prego... Num próximo movimento, a corda passaria por cima dele, deixando a engenhoca inclinada.
            “Obrigado.”
            Saboreou a sobremesa com lentidão e alguma dose de prazer. Os flocos de clara batida flutuavam no creme claro como as nuvens lá fora. De um momento para outro, de um momento para outro. Mais uma colherada, o doce na boca, salivando. Tinha curiosidade de ver a corda se soltar, mas era impossível. Minutos, minutos... Não seria possível. Pagou a conta.
            O elevador pareceu vagaroso, mas chegou ao saguão. Nenhum movimento, nada. Frustrado, atravessou a rua e...
            Aconteceu. O grito fez com que levantasse a cabeça. Ainda pendurado, o homem pedia ajuda. Alguém se debruçou na janela tarde demais. E ele viu o corpo despencando-se, até estourar como um ovo sobre o asfalto. Ploft. Ao lado, ele ainda pode ser os olhos arregalados de espanto e medo.
            Dois dentes haviam saltado para a sarjeta. Aquilo lhe parecia familiar, mas não deu maior importância.

sábado, 13 de outubro de 2012

Os Dentes



Os Dentes

                                                                                  Para Rubem Fonseca

1

            Primeiro perdeu o ar e debateu-se muito, tentando respirar. Uma bola, talvez do tamanho de uma bola de gude das grandes atochava sua garganta, indo e vindo, num movimento ondulante, sufocante. Depois... bem, não sabe exatamente o que aconteceu durante estas quase duas horas. De repente abriu os olhos como se acordasse e viu aquela quantidade toda de sangue. Compreendeu. Tanto compreendeu que um golpe, que talvez possamos chamar de enlouquecimento, fez doer todas as células de seu cérebro, depois de seu corpo, até chegar à sala toda, meio deformada por aquela coisa inerte ali no meio do tapete, mas a seus olhos algo pulsante, muito pulsante. O choque diz mais da perda, e a perda nada mais é que a comparação entre um ser vivo e um cadáver. Afinal, um corpo sem pulso nunca está estático. Aparentemente, apenas. Representa, na realidade, a aceleração máxima do tempo, a vertiginosa queda para o nada. Pensou, ou melhor, não pensou, quer dizer, pensou depois:  isso sofremos, porque estamos acostumados a morrer, e ver morrer, aos poucos. E aquele cadáver no centro da sala estava freneticamente percorrendo todos os anos que ainda não vivera, até decompor-se irremediavelmente.
            Sentiu dor, sem dúvida; tanta que surpreendeu-se com um tufo de seus cabelos grudado no vão dos dedos. Isso ele pode se lembrar. Deu mil voltas em torno do corpo, passou a mão direita sobre a testa já quase gelada, olhou bem dentro daqueles olhos castanhos, ainda com algum brilho. Estranho, pensou, agora podia olhar bem dentro dos olhos dela. Porque estavam inertes, porque não tinham expressão, porque não refletiam mais sua culpa. A culpa agora era outra.
            Uivou. Isso. A palavra expressa bem aquilo que ele fez. Não foi choro, foi um uivo prolongado, um som que não saía da garganta, quem sabe do estômago nauseado. Sentiu que o peito da mulher se enchia de gotas que não eram sangue. Percebeu então que também seu rosto estava ridiculamente marcado por lágrimas. Deixou-se daquele jeito, procurando  se largar na lassidão do fato consumado. Passou agora a mão esquerda sobre os seios ralos de adolescente, num gesto que sempre quis fazer, mas nunca tivera coragem. Agora podia.
            Surpreso, compreendeu. Amava mais aquela imobilidade que o frenético movimento anterior. Amava ainda mais aquela placidez, e aquela falta completa de angústia nos traços jovens do rosto. Oh! como amava! De repente, sorriu. E o tempo passou em mórbida ternura, em raivosa paixão por aqueles braços magros e aquelas mãos longilíneas.
            A cortina da sala não estancou a luz que pulou do beiral para dentro da janela ferida. Levantou-se devagar, meio tonto, foi até a área de serviço, abriu a gaveta do armário e de lá tirou um alicate. Sem violência, quase que com carinho, debruçou-se sobre a morta e, com algum esforço, arrancou-lhe um dente, depois outro – caninos. Com vagar e paciência, além de uma broca minúscula, fez um pequeno furo em cada um deles, sorrindo, entregando-se àquele algo de felicidade.
            Depois tomou um banho demorado. Era sábado. Tinha ainda um final de semana inteiro pela frente.

2
            Dormiu exatamente três horas. Nem um minuto a mais. Espreguiçou-se, escovou os dentes. Desistiu de coar o café em meio ao ato. Precisava de algo mais sólido que uma simples xícara de café e alguns biscoitos. Peixe. Na medida certa. Dali por diante comeria apenas carne branca. Bem, pelo menos por enquanto, pelo menos nesse dia, pelo menos naquela hora. Tirou algumas sardinhas do freezer, apanhou o jornal atirado sob a porta e leu-o todo, esperando o lento processo de descongelamento. Anúncios, coluna social, notas policiais, anúncios, política, esportes, banalidades, generalidades, catástrofes iam se derretendo e escorrendo pela mesa, como aquele leve suco do peixe que gota a gota era engolido pela pia. Certamente, seria melhor congelar a carne já em postas, o que facilitaria muito o trabalho do cozinheiro. Pensamento vago, movediço, corrediço, ora nas notícias, ora na cozinha entulhada. Durante uns vinte minutos, planejou detalhadamente a organização do freezer, depois, fez etiquetas, separou sacos plásticos e datou cada um deles, preparando o cardápio para o mês todo.
            As sardinhas sobre a mesa. Melhor começar o almoço. Com uma faca dentada, tentou preparar o peixe. Depois de lutar algum tempo com pedaços viscosos de carne, teve idéia melhor. Pé ante pé, como se evitasse acordá-la, debruçou-se sobre a mulher. Delicadamente fechou os olhos fixos, beijou a testa fria e tirou com cuidado a faca enterrada em seu peito. Sim, aquela sim. Experimentou o fio no polegar e satisfeito voltou a cozinha. Depois de lavá-la sob a torneira, com esponja e detergente, voltou aos peixes. Em segundos estavam prontos, metodicamente retalhados em postas muito finas, quase transparentes. Refogou-as em molho de ervas.
            Depois, uma salada cozida: couve-flor, cenouras, batatas, ao molho branco. Comida pronta, preparou a mesa, com os  talheres herdados da tia, a velha  porcelana inglesa e aquela taça de cristal desemparelhada, mas que ficava no armário, senão para uso, pelo menos  para ser olhada de vez em quando, vendo-se refletir na haste multifacetada.  Abriu uma garrafa de vinho tinto, tão encorpado que parecia manchar-lhe os lábios.
            Almoçou com vagar.
            Por volta das duas da tarde iniciou sua tarefa, cumprida longamente, com cuidado, precisão e método. Às oito da noite, tomou outro banho, desta vez muito quente, a ponto de sentir a pele avermelhada e com algum ardor. Vestiu-se com cuidado, apanhou os dois pequenos dentes sobre a cômoda, enfiou-os numa fina corrente de prata e colocou-a no pescoço. Um arrepio de prazer passou por sua coluna ao sentir o frio do marfim. Sobre o peito rosado, as duas pequenas peças pareciam duas gotas de leite derramado.
            Quando saiu, batendo o portão, ainda podia sentir o cheiro de tapete queimado vindo do terreno baldio existente nos fundos.