domingo, 11 de novembro de 2012

O Embrulho



O embrulho

                                                                                  Para João Antônio


            A gilete passou leve sobre a sacola de plástico. Malandro velho, não cortava. Só um risco e esperar cair a presa algum tempo depois. A dona, apressada e meio nervosa, nem sentiu e continuou seu passo meio bambo pela calçada quase vazia. Um, dois, três, e nada. Sacola resistente, o rasgão não vinha tão fácil. Comichão nos pés. Agora tinha que andar no mesmo ritmo, cara de office boy, pastinha preta debaixo do braço.
            Empinou um pouco mais o topete. Coisa de veado, fazia parte do tipo. Que mais? Desabotoar o último botão da jaqueta, sem deixar ver a camisa por baixo. Uma nesga do boné fugiu do bolso: escondeu rápido e pisou firme. Dois passos atrás o mano velho com a bolsa, para enrustir tudo. Era ele que vinha atrás? Outro qualquer? Não arriscou olhar, tinha que ser. Bandeira é bobeira.
            De repente, só uma parte da sacola se rompeu. A dona nem percebeu. Papel de embrulho ensangüentado, certamente carne para o almoço. Juntou-o rápido, na mesma hora que alguém gritou por trás o mesmo "pega ladrão de sempre". Virou-se. Nada do mano velho, só um engravatado engomadinho e o susto. Sem se voltar, a mulher corria esbaforida pela calçada, em sentido oposto ao deles. Sorriu. Certamente quebraria um salto antes de achar um guarda. Sorriso de bom moço: só caiu, deixe que eu devolvo. E lá se foi apressado, atrás da dona que se escafedera.
            Na primeira esquina, entrou num boteco e enfiou-se no banheiro. E o mano velho? Dane-se. Quem não ajuda não come. Bom... agora não tinha mais pressa. Botou o embrulho sobre a caixa de descarga, sentou-se no vaso, respirou fundo. Hoje ia ter banquete. Mijou, aliviou-se. Limpou a testa melada de gel, enfiou a cabeça debaixo da torneira e livrou-se do topete. Franja escorrida, boné, só então lembrou da jaqueta. E a sacola do mano velho? Na falta, enrolou-a na cintura e abriu ainda mais a camisa vermelha.
            Agora calmo, sentou-se na banqueta rachada do bar e pediu um café: me vê aí também os classificados de emprego! Ninguém por perto, só o dono lavando copos distraído. Fingiu ler, mas só via algumas letrinhas dançantes. Nunca ia entender aquilo, criado desde sei lá quando na rua. E o bosta do mano velho? No mínimo pó, erva ou cana.
            Como quem não quer nada, deixou uma moeda no balcão, enrolou o embrulho no jornal e cascou fora. Assobiando, entrou no beco. Não teve tempo de pensar num bife. Com a coisa aberta nas mãos sujas, vomitou na própria roupa.
            No dia seguinte, nem quis saber da notícia. Ás seis horas da tarde, um feto humano, de aproximadamente cinco meses de gestação foi encontrada em uma lata de lixo. Pelo estado de decomposição, estima-se que o aborto tenha sido realizado há sete dias.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Lustre



O Lustre

                A notícia chegou como uma hemoptise. Trabalhara aquele dia como um autômato, apenas os papéis rolando em suas mãos. Sequer sentira o frio que enregelava a cidade quase noturna, pensando na filha com pneumonia na casa da serra. Agora a notícia: a febre subira. Abotoou o paletó, mas se esqueceu do sobretudo, que ficaria ali por longo tempo. O elevador não vinha, e quando parava, estava lotado. Por fim, conseguiu um quase vazio. Alguém lhe sussurrou alguma coisa, mas não ouviu. Só lhe vinha à cabeça a palavra febre. Esta também lhe consumia as forças.
                O carro arrancou aos pulos, em marcha desenfreada, quase levando os para-choques de outro. Já na rua encontrou um sinal vermelho. E outro, mais outro. Por fim, furou todos, mal ouvindo os achincalhes de pedestres e motoristas. Suas mãos quase feriam o volante, que mal obedecia a seus comandos. Imaginava um rostinho vermelho, afogueado e acelerava mais ainda, pelas ruas lotadas e escorregadias.
                O dia terminou sem rosáceas de sol morto. As luzes foram se acendendo, vertiginosamente, e os cartazes luminosos não lhe diziam nada, a não ser dos brinquedos coloridos da filha. Ouvia sua voz nos autofalantes que percorriam as ruas anunciando coisas. Era um chamado sem resposta. Ainda.
                Entrou na estrada da serra enlouquecido, até mesmo esquecido das curvas perigosas e da pista estreita. Sua habilidade não era posta à prova, apenas vinha pelo instinto. Cada torneio da pista era chegar mais perto. E avançava, sem pensar em velocidade. Voava.
                No meio da do caminho, ouviu relinchos de cavalos. Que estariam fazendo ali, naquela noite tão fria. Mas eram quase um eco e pensou ter ouvido mal, dúvida que se desfez quando um tropel chegou a seus ouvidos. Certamente teriam escapado do cercado e se espalhado pelas serranias. Continuou contornando as curvas, mas sem a habilidade de sempre. Seus dedos endurecidos pelo frio e pelos nervos tensos não ajudavam muito. Às vezes deslizava um pouco, mas conseguia controlar o carro, que aspirava o ar frio com um ronco sereno.
                De repente, uma sombra negra e esguia sobre a pista. Tentou desviar e derrapou. Só sentiu a vertigem do carro capotando e Rolando morro abaixo. Depois o baque contra uma árvore. E depois mais nada. O frio envolveu o carro rapidamente. E a estrada vazia continuou vazia, escura e indiferente.
A noite passou lentamente e os campos se cobriram de um branco impoluto. Era a pior geada daquele inverno. Nem pios de pássaros, nada. Só o silêncio e o gelo nas copas das árvores e nos campos. Na estrada deserta, só o carro capotado, também alvejado pelo inverno rigoroso.
                Quando amanheceu timidamente, da janela semiaberta do veículo não se via um rosto. Apenas um lustre imenso, de pingentes cristalinos, com laivos de vermelho em suas entranhas. O sol pálido iluminou a cena, tirando faíscas irisadas do cristal.  Da estrada deserta, ninguém viu o espetáculo macabro. Na serra, uma menina também morria.