Os Dentes
Para Rubem Fonseca
1
Primeiro perdeu o ar e debateu-se
muito, tentando respirar. Uma bola, talvez do tamanho de uma bola de gude das
grandes atochava sua garganta, indo e vindo, num movimento ondulante,
sufocante. Depois... bem, não sabe exatamente o que aconteceu durante estas
quase duas horas. De repente abriu os olhos como se acordasse e viu aquela
quantidade toda de sangue. Compreendeu. Tanto compreendeu que um golpe, que
talvez possamos chamar de enlouquecimento, fez doer todas as células de seu
cérebro, depois de seu corpo, até chegar à sala toda, meio deformada por aquela
coisa inerte ali no meio do tapete, mas a seus olhos algo pulsante, muito
pulsante. O choque diz mais da perda, e a perda nada mais é que a comparação
entre um ser vivo e um cadáver. Afinal, um corpo sem pulso nunca está estático.
Aparentemente, apenas. Representa, na realidade, a aceleração máxima do tempo,
a vertiginosa queda para o nada. Pensou, ou melhor, não pensou, quer dizer,
pensou depois: isso sofremos, porque
estamos acostumados a morrer, e ver morrer, aos poucos. E aquele cadáver no
centro da sala estava freneticamente percorrendo todos os anos que ainda não
vivera, até decompor-se irremediavelmente.
Sentiu dor, sem dúvida; tanta que
surpreendeu-se com um tufo de seus cabelos grudado no vão dos dedos. Isso ele
pode se lembrar. Deu mil voltas em torno do corpo, passou a mão direita sobre a
testa já quase gelada, olhou bem dentro daqueles olhos castanhos, ainda com
algum brilho. Estranho, pensou, agora podia olhar bem dentro dos olhos dela.
Porque estavam inertes, porque não tinham expressão, porque não refletiam mais
sua culpa. A culpa agora era outra.
Uivou. Isso. A palavra expressa bem
aquilo que ele fez. Não foi choro, foi um uivo prolongado, um som que não saía
da garganta, quem sabe do estômago nauseado. Sentiu que o peito da mulher se
enchia de gotas que não eram sangue. Percebeu então que também seu rosto estava
ridiculamente marcado por lágrimas. Deixou-se daquele jeito, procurando se largar na lassidão do fato consumado.
Passou agora a mão esquerda sobre os seios ralos de adolescente, num gesto que
sempre quis fazer, mas nunca tivera coragem. Agora podia.
Surpreso, compreendeu. Amava mais
aquela imobilidade que o frenético movimento anterior. Amava ainda mais aquela
placidez, e aquela falta completa de angústia nos traços jovens do rosto. Oh!
como amava! De repente, sorriu. E o tempo passou em mórbida ternura, em raivosa
paixão por aqueles braços magros e aquelas mãos longilíneas.
A cortina da sala não estancou a luz
que pulou do beiral para dentro da janela ferida. Levantou-se devagar, meio
tonto, foi até a área de serviço, abriu a gaveta do armário e de lá tirou um
alicate. Sem violência, quase que com carinho, debruçou-se sobre a morta e, com
algum esforço, arrancou-lhe um dente, depois outro – caninos. Com vagar e
paciência, além de uma broca minúscula, fez um pequeno furo em cada um deles,
sorrindo, entregando-se àquele algo de felicidade.
Depois tomou um banho demorado. Era
sábado. Tinha ainda um final de semana inteiro pela frente.
2
Dormiu exatamente três horas. Nem um
minuto a mais. Espreguiçou-se, escovou os dentes. Desistiu de coar o café em
meio ao ato. Precisava de algo mais sólido que uma simples xícara de café e
alguns biscoitos. Peixe. Na medida certa. Dali por diante comeria apenas carne
branca. Bem, pelo menos por enquanto, pelo menos nesse dia, pelo menos naquela
hora. Tirou algumas sardinhas do freezer,
apanhou o jornal atirado sob a porta e leu-o todo, esperando o lento
processo de descongelamento. Anúncios, coluna social, notas policiais,
anúncios, política, esportes, banalidades, generalidades, catástrofes iam se
derretendo e escorrendo pela mesa, como aquele leve suco do peixe que gota a
gota era engolido pela pia. Certamente, seria melhor congelar a carne já em
postas, o que facilitaria muito o trabalho do cozinheiro. Pensamento vago,
movediço, corrediço, ora nas notícias, ora na cozinha entulhada. Durante uns
vinte minutos, planejou detalhadamente a organização do freezer, depois, fez etiquetas, separou sacos plásticos e datou
cada um deles, preparando o cardápio para o mês todo.
As sardinhas sobre a mesa. Melhor
começar o almoço. Com uma faca dentada, tentou preparar o peixe. Depois de
lutar algum tempo com pedaços viscosos de carne, teve idéia melhor. Pé ante pé,
como se evitasse acordá-la, debruçou-se sobre a mulher. Delicadamente fechou os
olhos fixos, beijou a testa fria e tirou com cuidado a faca enterrada em seu
peito. Sim, aquela sim. Experimentou o fio no polegar e satisfeito voltou a
cozinha. Depois de lavá-la sob a torneira, com esponja e detergente, voltou aos
peixes. Em segundos estavam prontos, metodicamente retalhados em postas muito
finas, quase transparentes. Refogou-as em molho de ervas.
Depois, uma salada cozida:
couve-flor, cenouras, batatas, ao molho branco. Comida pronta, preparou a mesa,
com os talheres herdados da tia, a
velha porcelana inglesa e aquela taça de
cristal desemparelhada, mas que ficava no armário, senão para uso, pelo
menos para ser olhada de vez em quando,
vendo-se refletir na haste multifacetada.
Abriu uma garrafa de vinho tinto, tão encorpado que parecia manchar-lhe
os lábios.
Almoçou com vagar.
Por volta das duas da tarde iniciou
sua tarefa, cumprida longamente, com cuidado, precisão e método. Às oito da
noite, tomou outro banho, desta vez muito quente, a ponto de sentir a pele
avermelhada e com algum ardor. Vestiu-se com cuidado, apanhou os dois pequenos
dentes sobre a cômoda, enfiou-os numa fina corrente de prata e colocou-a no
pescoço. Um arrepio de prazer passou por sua coluna ao sentir o frio do marfim.
Sobre o peito rosado, as duas pequenas peças pareciam duas gotas de leite
derramado.
Quando saiu, batendo o portão, ainda
podia sentir o cheiro de tapete queimado vindo do terreno baldio existente nos
fundos.
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