sábado, 13 de outubro de 2012

Os Dentes



Os Dentes

                                                                                  Para Rubem Fonseca

1

            Primeiro perdeu o ar e debateu-se muito, tentando respirar. Uma bola, talvez do tamanho de uma bola de gude das grandes atochava sua garganta, indo e vindo, num movimento ondulante, sufocante. Depois... bem, não sabe exatamente o que aconteceu durante estas quase duas horas. De repente abriu os olhos como se acordasse e viu aquela quantidade toda de sangue. Compreendeu. Tanto compreendeu que um golpe, que talvez possamos chamar de enlouquecimento, fez doer todas as células de seu cérebro, depois de seu corpo, até chegar à sala toda, meio deformada por aquela coisa inerte ali no meio do tapete, mas a seus olhos algo pulsante, muito pulsante. O choque diz mais da perda, e a perda nada mais é que a comparação entre um ser vivo e um cadáver. Afinal, um corpo sem pulso nunca está estático. Aparentemente, apenas. Representa, na realidade, a aceleração máxima do tempo, a vertiginosa queda para o nada. Pensou, ou melhor, não pensou, quer dizer, pensou depois:  isso sofremos, porque estamos acostumados a morrer, e ver morrer, aos poucos. E aquele cadáver no centro da sala estava freneticamente percorrendo todos os anos que ainda não vivera, até decompor-se irremediavelmente.
            Sentiu dor, sem dúvida; tanta que surpreendeu-se com um tufo de seus cabelos grudado no vão dos dedos. Isso ele pode se lembrar. Deu mil voltas em torno do corpo, passou a mão direita sobre a testa já quase gelada, olhou bem dentro daqueles olhos castanhos, ainda com algum brilho. Estranho, pensou, agora podia olhar bem dentro dos olhos dela. Porque estavam inertes, porque não tinham expressão, porque não refletiam mais sua culpa. A culpa agora era outra.
            Uivou. Isso. A palavra expressa bem aquilo que ele fez. Não foi choro, foi um uivo prolongado, um som que não saía da garganta, quem sabe do estômago nauseado. Sentiu que o peito da mulher se enchia de gotas que não eram sangue. Percebeu então que também seu rosto estava ridiculamente marcado por lágrimas. Deixou-se daquele jeito, procurando  se largar na lassidão do fato consumado. Passou agora a mão esquerda sobre os seios ralos de adolescente, num gesto que sempre quis fazer, mas nunca tivera coragem. Agora podia.
            Surpreso, compreendeu. Amava mais aquela imobilidade que o frenético movimento anterior. Amava ainda mais aquela placidez, e aquela falta completa de angústia nos traços jovens do rosto. Oh! como amava! De repente, sorriu. E o tempo passou em mórbida ternura, em raivosa paixão por aqueles braços magros e aquelas mãos longilíneas.
            A cortina da sala não estancou a luz que pulou do beiral para dentro da janela ferida. Levantou-se devagar, meio tonto, foi até a área de serviço, abriu a gaveta do armário e de lá tirou um alicate. Sem violência, quase que com carinho, debruçou-se sobre a morta e, com algum esforço, arrancou-lhe um dente, depois outro – caninos. Com vagar e paciência, além de uma broca minúscula, fez um pequeno furo em cada um deles, sorrindo, entregando-se àquele algo de felicidade.
            Depois tomou um banho demorado. Era sábado. Tinha ainda um final de semana inteiro pela frente.

2
            Dormiu exatamente três horas. Nem um minuto a mais. Espreguiçou-se, escovou os dentes. Desistiu de coar o café em meio ao ato. Precisava de algo mais sólido que uma simples xícara de café e alguns biscoitos. Peixe. Na medida certa. Dali por diante comeria apenas carne branca. Bem, pelo menos por enquanto, pelo menos nesse dia, pelo menos naquela hora. Tirou algumas sardinhas do freezer, apanhou o jornal atirado sob a porta e leu-o todo, esperando o lento processo de descongelamento. Anúncios, coluna social, notas policiais, anúncios, política, esportes, banalidades, generalidades, catástrofes iam se derretendo e escorrendo pela mesa, como aquele leve suco do peixe que gota a gota era engolido pela pia. Certamente, seria melhor congelar a carne já em postas, o que facilitaria muito o trabalho do cozinheiro. Pensamento vago, movediço, corrediço, ora nas notícias, ora na cozinha entulhada. Durante uns vinte minutos, planejou detalhadamente a organização do freezer, depois, fez etiquetas, separou sacos plásticos e datou cada um deles, preparando o cardápio para o mês todo.
            As sardinhas sobre a mesa. Melhor começar o almoço. Com uma faca dentada, tentou preparar o peixe. Depois de lutar algum tempo com pedaços viscosos de carne, teve idéia melhor. Pé ante pé, como se evitasse acordá-la, debruçou-se sobre a mulher. Delicadamente fechou os olhos fixos, beijou a testa fria e tirou com cuidado a faca enterrada em seu peito. Sim, aquela sim. Experimentou o fio no polegar e satisfeito voltou a cozinha. Depois de lavá-la sob a torneira, com esponja e detergente, voltou aos peixes. Em segundos estavam prontos, metodicamente retalhados em postas muito finas, quase transparentes. Refogou-as em molho de ervas.
            Depois, uma salada cozida: couve-flor, cenouras, batatas, ao molho branco. Comida pronta, preparou a mesa, com os  talheres herdados da tia, a velha  porcelana inglesa e aquela taça de cristal desemparelhada, mas que ficava no armário, senão para uso, pelo menos  para ser olhada de vez em quando, vendo-se refletir na haste multifacetada.  Abriu uma garrafa de vinho tinto, tão encorpado que parecia manchar-lhe os lábios.
            Almoçou com vagar.
            Por volta das duas da tarde iniciou sua tarefa, cumprida longamente, com cuidado, precisão e método. Às oito da noite, tomou outro banho, desta vez muito quente, a ponto de sentir a pele avermelhada e com algum ardor. Vestiu-se com cuidado, apanhou os dois pequenos dentes sobre a cômoda, enfiou-os numa fina corrente de prata e colocou-a no pescoço. Um arrepio de prazer passou por sua coluna ao sentir o frio do marfim. Sobre o peito rosado, as duas pequenas peças pareciam duas gotas de leite derramado.
            Quando saiu, batendo o portão, ainda podia sentir o cheiro de tapete queimado vindo do terreno baldio existente nos fundos.


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