Dois Dentes
Para Sérgio Santanna
Almoçava. Era tarde. Um dos últimos
clientes. Nem por isso tinha pressa. Pelas janelas envidraçadas daquele
vigésimo andar, não via mais a cidade, só nuvens, só céu chumbo. Os outros
edifícios estavam muito abaixo, quase só casas de bairro antigo. Do outro lado
da sala uma mulher o fitou, e seu rosto exageradamente maquilado lhe pareceu
menos duro à luz de velas. Deveria ter sido uma mulher atraente, para quem
gostasse daquele tipo de brinquedo de porcelana; mas sua beleza era tola, nas
roupas de lantejoulas reluzentes e metálicas, na blusa decotada e saia de
veludo.
Por que pensava nisso? Talvez
porque, além dele, apenas o lavador de vidraças era visível no salão enorme. Um
do lado de dentro, outro do lado de fora. E sem qualquer cuidado, o sujeito
fazia seu serviço sobre uma plataforma de madeira pendurada em uma roldana. Nem
cinto, nem nada.
O filé estava macio, mas faltava
algum tempero. Comeu-o lentamente, observando o homem e sendo observado. Sendo
observado... Encarou-o. Também lentamente o homem foi afastando a plataforma
para a janela ao lado, diante de um corredor escuro. Levantou-se.
Ninguém na sala, ninguém o via. De
que maneira faria aquilo? Diante do corredor, a porta do banheiro. Parou diante
dela, tirou um cigarro e foi até a janela. Olharia para fora como quem não quer
nada, cuspiria no vazio? Talvez apenas ficasse parado, fumando como quem não
quer nada, soltando a fumaça no ar quente da tarde morna, simulando pensar na
vida, na morte da bezerra, na política nacional, nos problemas existenciais que
não tinha? Nada, apenas isso:
“Tem fogo?” Inclinou-se para a chama
do isqueiro. Um empurrão seria suficiente, mas perigoso. Não havia tempo de
voltar para a mesa. Num relance, viu a corda que segurava a tábua por baixo.
Apenas um prego mal colocado impedia que ela corresse. Simulando apoiar-se no
parapeito da janela, achatou o prego em direção à madeira. A vida por um prego,
a melhor metáfora da fragilidade. Confiante nos músculos, na força, na
agilidade, o homem trabalhava despreocupado, certo de terminar o serviço,
esperar o ônibus, observar a noite chegando pelos vidros empoeirados da
condução, certo do banho, certo do jantar mesquinho mas reconfortante, certo do
sono e do novo dia. A vida por um prego... Num próximo movimento, a corda
passaria por cima dele, deixando a engenhoca inclinada.
“Obrigado.”
Saboreou a sobremesa com lentidão e
alguma dose de prazer. Os flocos de clara batida flutuavam no creme claro como
as nuvens lá fora. De um momento para outro, de um momento para outro. Mais uma
colherada, o doce na boca, salivando. Tinha curiosidade de ver a corda se
soltar, mas era impossível. Minutos, minutos... Não seria possível. Pagou a
conta.
O elevador pareceu vagaroso, mas
chegou ao saguão. Nenhum movimento, nada. Frustrado, atravessou a rua e...
Aconteceu. O grito fez com que
levantasse a cabeça. Ainda pendurado, o homem pedia ajuda. Alguém se debruçou
na janela tarde demais. E ele viu o corpo despencando-se, até estourar como um
ovo sobre o asfalto. Ploft. Ao lado, ele ainda pode ser os olhos arregalados de
espanto e medo.
Dois dentes haviam saltado para a
sarjeta. Aquilo lhe parecia familiar, mas não deu maior importância.
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