terça-feira, 16 de outubro de 2012

Dois Dentes



Dois Dentes

            Para Sérgio Santanna


            Almoçava. Era tarde. Um dos últimos clientes. Nem por isso tinha pressa. Pelas janelas envidraçadas daquele vigésimo andar, não via mais a cidade, só nuvens, só céu chumbo. Os outros edifícios estavam muito abaixo, quase só casas de bairro antigo. Do outro lado da sala uma mulher o fitou, e seu rosto exageradamente maquilado lhe pareceu menos duro à luz de velas. Deveria ter sido uma mulher atraente, para quem gostasse daquele tipo de brinquedo de porcelana; mas sua beleza era tola, nas roupas de lantejoulas reluzentes e metálicas, na blusa decotada e saia de veludo.
            Por que pensava nisso? Talvez porque, além dele, apenas o lavador de vidraças era visível no salão enorme. Um do lado de dentro, outro do lado de fora. E sem qualquer cuidado, o sujeito fazia seu serviço sobre uma plataforma de madeira pendurada em uma roldana. Nem cinto, nem nada.
            O filé estava macio, mas faltava algum tempero. Comeu-o lentamente, observando o homem e sendo observado. Sendo observado... Encarou-o. Também lentamente o homem foi afastando a plataforma para a janela ao lado, diante de um corredor escuro. Levantou-se.
            Ninguém na sala, ninguém o via. De que maneira faria aquilo? Diante do corredor, a porta do banheiro. Parou diante dela, tirou um cigarro e foi até a janela. Olharia para fora como quem não quer nada, cuspiria no vazio? Talvez apenas ficasse parado, fumando como quem não quer nada, soltando a fumaça no ar quente da tarde morna, simulando pensar na vida, na morte da bezerra, na política nacional, nos problemas existenciais que não tinha? Nada, apenas isso:
            “Tem fogo?” Inclinou-se para a chama do isqueiro. Um empurrão seria suficiente, mas perigoso. Não havia tempo de voltar para a mesa. Num relance, viu a corda que segurava a tábua por baixo. Apenas um prego mal colocado impedia que ela corresse. Simulando apoiar-se no parapeito da janela, achatou o prego em direção à madeira. A vida por um prego, a melhor metáfora da fragilidade. Confiante nos músculos, na força, na agilidade, o homem trabalhava despreocupado, certo de terminar o serviço, esperar o ônibus, observar a noite chegando pelos vidros empoeirados da condução, certo do banho, certo do jantar mesquinho mas reconfortante, certo do sono e do novo dia. A vida por um prego... Num próximo movimento, a corda passaria por cima dele, deixando a engenhoca inclinada.
            “Obrigado.”
            Saboreou a sobremesa com lentidão e alguma dose de prazer. Os flocos de clara batida flutuavam no creme claro como as nuvens lá fora. De um momento para outro, de um momento para outro. Mais uma colherada, o doce na boca, salivando. Tinha curiosidade de ver a corda se soltar, mas era impossível. Minutos, minutos... Não seria possível. Pagou a conta.
            O elevador pareceu vagaroso, mas chegou ao saguão. Nenhum movimento, nada. Frustrado, atravessou a rua e...
            Aconteceu. O grito fez com que levantasse a cabeça. Ainda pendurado, o homem pedia ajuda. Alguém se debruçou na janela tarde demais. E ele viu o corpo despencando-se, até estourar como um ovo sobre o asfalto. Ploft. Ao lado, ele ainda pode ser os olhos arregalados de espanto e medo.
            Dois dentes haviam saltado para a sarjeta. Aquilo lhe parecia familiar, mas não deu maior importância.

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