terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pela Janela Ouro Preto



Pela Janela Ouro Preto

Para Elizabeth Bishop


            Cactus, samambaias, bromélias e heliotrópios, carbúnculos (Isso é planta?) (céus, jamais soube o que quer dizer heliotrópios). Nem sei porque usei esses nomes de plantas, talvez por um capricho de sonoridade, por um spatifilus perdido na calçada ou apenas alguma imprudência nervosa, coisa que ficou em pendência no cérebro por alguns anos. E ficam, você sabia? Como um quarto de guardados ou a memória de um computador. Um dia sai, ou melhor, salta, pula, se arrasta aos pés do incauto que abrir o arquivo imenso das patifarias humanas.
            Ela não sabe e nem saberá que falo dela. Para mim, são e não são apenas livros que se amontoam sobre a mesa meio sujos de pó e fumo. Lá embaixo não vejo Ouro Preto e nunca verei; e também não andarei pelos mesmas ladeiras que serviram de linhas para versos. Pela janela vejo uma calçada e muito lixo entulhado pelos cantos, como se toda zoeira da praia viesse justamente se depositar aqui, sob meus pés, ou melhor, sob meus olhos. E há vidro e sombra e brilho no sol histérico que deposita  na avenida pontinhos salientes. E há também o morro, helicópteros e jacarés. Nem sei mais porque falo de jacarés; certamente porque uma adolescente de quarenta e tantos anos os viu e depois contou em detalhes uma história não mais de jacarés, mas de algumas travessuras em Diamantina.
            Perco-me, como se minhas palavras andassem pelas vielas tortas, barrocas, enladeiradas; andam tontas por labirintos de imagens e sons e sinos que não mais me obedecem: fazem festa, relaxadas de sintaxes, sinuosas, deslocadas como um navio cargueiro aportado na montanha. E quem será essa mulher que vejo e sinto não mais aboletada numa casa futurista, mas em plena avenida e em meio a um povo moreno e mais ou menos selvagem (pelo menos para ela)? Há pés e passos e versos pendurados no ar, melhor dizendo, pendurados num prego na parede como se sustentassem a casa e ancorassem todos os dias em seu plácido ficar. Amontoam-se. Aversam-se, cruzam-se em espirais de olhos-palavras manchadas na página de papel de pão.
            Uma cadela cruza a esquina e vem claudicante. Está magra, sarnenta e torta, atropelada ou simplesmente faminta. Seu pêlo já se foi quase todo, sobram apenas alguns tufos esparsos pelo couro meio ressequido, meio purulento, às vezes esfarinhado em cascas finas. Sarnenta, triste e sarnenta, porém ainda estica as patas dianteiras e derruba uma lata de lixo. Com o focinho babujante cata restos (não vejo bem) que parecem ser algumas sobras de almoço: arroz, feijão, alguns ossos descarnados de frango. Resfolega quase sem forças, mastiga quase sem dentes, vive quase sem vida; mas certamente com fome. Morde, como se mordesse com fúria mais um dia dos poucos que ainda tem. Ou Não tem.
            Saciada, cruza meu ângulo de visão faceira (ambas, a cadela e a visão) ainda claudicante. Apesar do olhar vago, do pêlo esgarçado, apesar da sarna, da bicheira e dos ferimentos (quem sabe um atropelamento) caminha com um jeito nobre, até elegante. Depois, vai diminuindo, para se tornar um ponto cor-de-rosa na calçada, na soalheira causticante, na assimetria concreta de losangos. Ou em curvas ondulantes? (Nem sei mais.) Você saberia? Um verso se ergue e some por trás da favela da Babilônia e os helicópteros aos bandos sugam o último sangue que a pele ainda mostra. Ninguém ouve tiros. E tudo é paz novamente na Avenida. Até chegue o carnaval, com a cadela à frente, numa alegoria agonizante de um momento que morre por trás daquela onda que o surfista não pegou. Talvez o boto, num barco-gaiola, entre samambaias, caranguejos, banhos de sol e uma arara que abarulhenta a tarde, quando as nuvens despencam em cascatas sobre a gente morena.
            Pela janela, Ouro Preto. E o mar de ferro repete o marulho nas rodas de uma carroça que chacoalha as vidraças. No prego, os poemas gemem.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Só foi um conto/crônica, baseado em poemas e na vida de Elizabeth Bishop. O mérito é dela.

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