Pela Janela
Ouro Preto
Para Elizabeth Bishop
Cactus, samambaias, bromélias e
heliotrópios, carbúnculos (Isso é planta?) (céus, jamais soube o que quer dizer
heliotrópios). Nem sei porque usei
esses nomes de plantas, talvez por um capricho de sonoridade, por um spatifilus
perdido na calçada ou apenas alguma imprudência nervosa, coisa que ficou em
pendência no cérebro por alguns anos. E ficam, você sabia? Como um quarto de
guardados ou a memória de um computador. Um dia sai, ou melhor, salta, pula, se
arrasta aos pés do incauto que abrir o arquivo imenso das patifarias humanas.
Ela não sabe e nem saberá que falo
dela. Para mim, são e não são apenas livros que se amontoam sobre a mesa meio
sujos de pó e fumo. Lá embaixo não vejo Ouro Preto e nunca verei; e também não
andarei pelos mesmas ladeiras que serviram de linhas para versos. Pela janela
vejo uma calçada e muito lixo entulhado pelos cantos, como se toda zoeira da
praia viesse justamente se depositar aqui, sob meus pés, ou melhor, sob meus
olhos. E há vidro e sombra e brilho no sol histérico que deposita na avenida pontinhos salientes. E há também o
morro, helicópteros e jacarés. Nem sei mais porque falo de jacarés; certamente
porque uma adolescente de quarenta e tantos anos os viu e depois contou em
detalhes uma história não mais de jacarés, mas de algumas travessuras em
Diamantina.
Perco-me, como se minhas palavras
andassem pelas vielas tortas, barrocas, enladeiradas; andam tontas por
labirintos de imagens e sons e sinos que não mais me obedecem: fazem festa,
relaxadas de sintaxes, sinuosas, deslocadas como um navio cargueiro aportado na
montanha. E quem será essa mulher que vejo e sinto não mais aboletada numa casa
futurista, mas em plena avenida e em meio a um povo moreno e mais ou menos
selvagem (pelo menos para ela)? Há pés e passos e versos pendurados no ar,
melhor dizendo, pendurados num prego na parede como se sustentassem a casa e
ancorassem todos os dias em seu plácido ficar. Amontoam-se. Aversam-se,
cruzam-se em espirais de olhos-palavras manchadas na página de papel de pão.
Uma cadela cruza a esquina e vem
claudicante. Está magra, sarnenta e torta, atropelada ou simplesmente faminta.
Seu pêlo já se foi quase todo, sobram apenas alguns tufos esparsos pelo couro
meio ressequido, meio purulento, às vezes esfarinhado em cascas finas.
Sarnenta, triste e sarnenta, porém ainda estica as patas dianteiras e derruba
uma lata de lixo. Com o focinho babujante cata restos (não vejo bem) que
parecem ser algumas sobras de almoço: arroz, feijão, alguns ossos descarnados
de frango. Resfolega quase sem forças, mastiga quase sem dentes, vive quase sem
vida; mas certamente com fome. Morde, como se mordesse com fúria mais um dia
dos poucos que ainda tem. Ou Não tem.
Saciada, cruza meu ângulo de visão
faceira (ambas, a cadela e a visão) ainda claudicante. Apesar do olhar vago, do
pêlo esgarçado, apesar da sarna, da bicheira e dos ferimentos (quem sabe um
atropelamento) caminha com um jeito nobre, até elegante. Depois, vai
diminuindo, para se tornar um ponto cor-de-rosa na calçada, na soalheira
causticante, na assimetria concreta de losangos. Ou em curvas ondulantes? (Nem
sei mais.) Você saberia? Um verso se ergue e some por trás da favela da
Babilônia e os helicópteros aos bandos sugam o último sangue que a pele ainda
mostra. Ninguém ouve tiros. E tudo é paz novamente na Avenida. Até chegue o
carnaval, com a cadela à frente, numa alegoria agonizante de um momento que
morre por trás daquela onda que o surfista não pegou. Talvez o boto, num
barco-gaiola, entre samambaias, caranguejos, banhos de sol e uma arara que
abarulhenta a tarde, quando as nuvens despencam em cascatas sobre a gente
morena.
Pela janela, Ouro Preto. E o mar de
ferro repete o marulho nas rodas de uma carroça que chacoalha as vidraças. No
prego, os poemas gemem.
gostei muito, muito
ResponderExcluirabraço
Só foi um conto/crônica, baseado em poemas e na vida de Elizabeth Bishop. O mérito é dela.
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