O Lustre
A
notícia chegou como uma hemoptise. Trabalhara aquele dia como um autômato,
apenas os papéis rolando em suas mãos. Sequer sentira o frio que enregelava a
cidade quase noturna, pensando na filha com pneumonia na casa da serra. Agora a
notícia: a febre subira. Abotoou o paletó, mas se esqueceu do sobretudo, que
ficaria ali por longo tempo. O elevador não vinha, e quando parava, estava
lotado. Por fim, conseguiu um quase vazio. Alguém lhe sussurrou alguma coisa,
mas não ouviu. Só lhe vinha à cabeça a palavra febre. Esta também lhe consumia
as forças.
O
carro arrancou aos pulos, em marcha desenfreada, quase levando os para-choques
de outro. Já na rua encontrou um sinal vermelho. E outro, mais outro. Por fim,
furou todos, mal ouvindo os achincalhes de pedestres e motoristas. Suas mãos
quase feriam o volante, que mal obedecia a seus comandos. Imaginava um rostinho
vermelho, afogueado e acelerava mais ainda, pelas ruas lotadas e escorregadias.
O
dia terminou sem rosáceas de sol morto. As luzes foram se acendendo,
vertiginosamente, e os cartazes luminosos não lhe diziam nada, a não ser dos
brinquedos coloridos da filha. Ouvia sua voz nos autofalantes que percorriam as
ruas anunciando coisas. Era um chamado sem resposta. Ainda.
Entrou
na estrada da serra enlouquecido, até mesmo esquecido das curvas perigosas e da
pista estreita. Sua habilidade não era posta à prova, apenas vinha pelo
instinto. Cada torneio da pista era chegar mais perto. E avançava, sem pensar
em velocidade. Voava.
No
meio da do caminho, ouviu relinchos de cavalos. Que estariam fazendo ali,
naquela noite tão fria. Mas eram quase um eco e pensou ter ouvido mal, dúvida
que se desfez quando um tropel chegou a seus ouvidos. Certamente teriam escapado
do cercado e se espalhado pelas serranias. Continuou contornando as curvas, mas
sem a habilidade de sempre. Seus dedos endurecidos pelo frio e pelos nervos
tensos não ajudavam muito. Às vezes deslizava um pouco, mas conseguia controlar
o carro, que aspirava o ar frio com um ronco sereno.
De
repente, uma sombra negra e esguia sobre a pista. Tentou desviar e derrapou. Só
sentiu a vertigem do carro capotando e Rolando morro abaixo. Depois o baque
contra uma árvore. E depois mais nada. O frio envolveu o carro rapidamente. E a
estrada vazia continuou vazia, escura e indiferente.
A noite passou
lentamente e os campos se cobriram de um branco impoluto. Era a pior geada
daquele inverno. Nem pios de pássaros, nada. Só o silêncio e o gelo nas copas
das árvores e nos campos. Na estrada deserta, só o carro capotado, também
alvejado pelo inverno rigoroso.
Quando
amanheceu timidamente, da janela semiaberta do veículo não se via um rosto.
Apenas um lustre imenso, de pingentes cristalinos, com laivos de vermelho em suas
entranhas. O sol pálido iluminou a cena, tirando faíscas irisadas do
cristal. Da estrada deserta, ninguém viu
o espetáculo macabro. Na serra, uma menina também morria.
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