O embrulho
Para João Antônio
A gilete passou leve sobre a sacola
de plástico. Malandro velho, não cortava. Só um risco e esperar cair a presa
algum tempo depois. A dona, apressada e meio nervosa, nem sentiu e continuou
seu passo meio bambo pela calçada quase vazia. Um, dois, três, e nada. Sacola
resistente, o rasgão não vinha tão fácil. Comichão nos pés. Agora tinha que
andar no mesmo ritmo, cara de office boy,
pastinha preta debaixo do braço.
Empinou um pouco mais o topete.
Coisa de veado, fazia parte do tipo. Que mais? Desabotoar o último botão da
jaqueta, sem deixar ver a camisa por baixo. Uma nesga do boné fugiu do bolso:
escondeu rápido e pisou firme. Dois passos atrás o mano velho com a bolsa, para
enrustir tudo. Era ele que vinha atrás? Outro qualquer? Não arriscou olhar,
tinha que ser. Bandeira é bobeira.
De repente, só uma parte da sacola
se rompeu. A dona nem percebeu. Papel de embrulho ensangüentado, certamente
carne para o almoço. Juntou-o rápido, na mesma hora que alguém gritou por trás
o mesmo "pega ladrão de sempre". Virou-se. Nada do mano velho, só um
engravatado engomadinho e o susto. Sem se voltar, a mulher corria esbaforida
pela calçada, em sentido oposto ao deles. Sorriu. Certamente quebraria um salto
antes de achar um guarda. Sorriso de bom moço: só caiu, deixe que eu devolvo. E
lá se foi apressado, atrás da dona que se escafedera.
Na primeira esquina, entrou num
boteco e enfiou-se no banheiro. E o mano velho? Dane-se. Quem não ajuda não
come. Bom... agora não tinha mais pressa. Botou o embrulho sobre a caixa de
descarga, sentou-se no vaso, respirou fundo. Hoje ia ter banquete. Mijou,
aliviou-se. Limpou a testa melada de gel, enfiou a cabeça debaixo da torneira e
livrou-se do topete. Franja escorrida, boné, só então lembrou da jaqueta. E a
sacola do mano velho? Na falta, enrolou-a na cintura e abriu ainda mais a
camisa vermelha.
Agora calmo, sentou-se na banqueta
rachada do bar e pediu um café: me vê aí também os classificados de emprego!
Ninguém por perto, só o dono lavando copos distraído. Fingiu ler, mas só via
algumas letrinhas dançantes. Nunca ia entender aquilo, criado desde sei lá
quando na rua. E o bosta do mano velho? No mínimo pó, erva ou cana.
Como quem não quer nada, deixou uma
moeda no balcão, enrolou o embrulho no jornal e cascou fora. Assobiando, entrou
no beco. Não teve tempo de pensar num bife. Com a coisa aberta nas mãos sujas,
vomitou na própria roupa.
No dia seguinte, nem quis saber da
notícia. Ás seis horas da tarde, um feto humano, de aproximadamente cinco meses
de gestação foi encontrada em uma lata de lixo. Pelo estado de decomposição,
estima-se que o aborto tenha sido realizado há sete dias.
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