Leopoldo Comitti
terça-feira, 15 de março de 2016
Apresentação do Livro de Danilo Barcelos, caso aprovado pelo Editor
Verter voragens: a poética de Danilo Barcelos
Conheci Danilo Barcelos duas vezes. A primeira foi em
2000, um rapaz ainda muito moço, a cursar a disciplina de Teoria da Literatura,
na Universidade Federal de Ouro Preto. Não chamava a atenção unicamente pelo
porte e simplicidade, mas também pela excelência de sua produção acadêmica. Também
sua disposição para auxiliar o grupo do Centro de Estudos Literários Luso-brasileiros
era notável, e ,em tais tarefas esbanjava simpatia, com seu jeito de menino
crescido por demais e muito cedo. De resto, não se diferenciava em nada dos
colegas de turma. Nesse tempo, jamais me apresentou texto qualquer, para uma
avaliação, como faziam tantos outros. Talvez por não se achar pronto para isso
(como se um dia estejamos prontos), talvez por timidez.
` Conheci Danilo pela segunda vez
em 2015, quando nos reencontramos virtualmente, na internet. Subitamente, ele me
enviou um anexo denominado Tear de Ondas. Pasmo, espanto, prazer me tomaram
imediatamente. O que via diante de mim era um texto pronto e publicável, e,
mais do que isso, uma experiência de leitura absolutamente nova.
Durante anos, comentávamos, o Prof. Marcus
Vinícius de Freitas e eu, que a poesia brasileira estava carente de uma radical
renovação. Uma nova sintaxe, uma nova forma, um conteúdo renovador. E, de
repente, anos depois, vindo de alguém inesperado, eu estava diante de tudo
aquilo que preconizávamos. Tear de Ondas
não se limita a um exercício de imagens. O texto ondula em consonância com o
campo semântico que evoca. Aquilo que poderia acabar em simples melopeia, rompe
com a lógica de boa parte da poesia atual, que busca em estados mentais
modificados um cantar ilógico e imprudente.
Não. Aquilo
que eu via era uma superfície textual fluente e notavelmente agradável ao
ouvido, flutuando e correspondendo ao com o oscilar de um mar de palavras. Como
verdadeiro tear estético, entretecia um emaranhado de discursos, com tal
habilidade, que às vezes deixávamos de estar conscientes de que aquilo que
líamos era algo escrito com segurança, arquitetado com maestria, fazendo uso
das mais finas técnicas literárias. Ali estava um exemplo perfeito da renovação
que procurávamos.
Mas, pareço me
esquecer de que não é Tear de Ondas
que apresento. Nada disso, a obra de um autor está intrinsicamente relacionada
a outras, especialmente quando são muito próximas esteticamente, ou rompem com
um padrão. No caso de é corpo seu norte,
Danilo Barcelos faz ambas as coisas e volta à poesia com o que tem de melhor em
recursos fônicos, mas avança sensivelmente com uma sintaxe enlouquecida, mas
estranhamente bela e um uso de imagens completamente renovador. é corpo seu norte, assim mesmo, em
minúsculas, parece provocar ou demonstrar como se realmente faz poema maiúsculo. Como já disse, há muito, nós,
os mais velhos, procuramos uma sintaxe, que os novos tentam, mas nada mais
fazem que repetir 22. Danilo a encontrou, como demonstra
intensamente este pequeno trecho: “ assentar uma casa quando não mais/e/perceber
que a casa é um rio inteiro.” Outros exemplos mais radicais pululam pela obra.
O texto é
curto, mas denso, quase enigmático, ao mesmo tempo preciso nas metáforas. Desdenha
de quase todos os recursos da poética tradicional para criar algo seu. Profundo
e ao mesmo tempo fluente. Trata-se de um livro de um poema só, mostrando uma
maturidade imensa, não somente para sua idade, como também para seu contexto. é corpo seu norte é ouro puro, um exemplo de que nem tudo ainda
foi feito na Literatura Brasileira. Destaca-se na comissão de frente da nova
poesia, especialmente em um momento em que a mesma tem andado muito prosaica. Danilo Barcelos é algo diferente, como se palavras soltas e
fluidas saíssem de sua boca, mas de forma ora conjuntiva, ora disjuntiva, mas sempre
reflexiva: um pensar sobre si mesmo e sobre os outros. Textos assim muitas
vezes soam insólitos, ou pouco trabalhados por falso poeta, desconhecedor do
que realmente é poesia. Mas não nos esqueçamos que o autor é doutor em
literatura. Em condições semelhantes, são poucos seus pares, e cito como
exemplo Dirlenvalder Loyolla, que também está no prelo da Editora Kazuá.
Danilo
Barcelos não escreve, verte palavras, jorra sentidos. Enigmático, mas saborosamente legível, pois
seus versos passeiam por temas e assuntos encontráveis em outros poetas (de seu
nível, diga-se de passagem). Enigmático, mas saborosamente relido em todas as
suas ambiguidades. A primeira delas diz respeito a uma dúvida, a respeito daquilo
que há de se fixar em nossa memória, coisa esta que talvez nem o autor tenha
uma resposta perfeitamente admissível: trata-se de uma nebulosa de reflexões,
ou um intrincado desenrolar de uma lírica amorosa? A resposta seria: ambas.
Isto porque um Outro se insinua no texto (já em seu título), mas não vem
acompanhado de adjetivos ou portos de ancoragem que justifiquem tal
interpretação, pois não é de amor que se fala, mas de corpos que se
encontram numa fala muda, feita de
gestos, de encontros e desencontros. Apresenta o Outro, como um desdobramento
de si mesmo, que se enrosca em lençóis amarfanhados, mas não coloca ali os
indícios de uma presença que não seja sua experiência do toque, em que o
interlocutor não se manifesta, identificado apenas por pronomes, no plural. Em
princípio, sequer estes, mas um ambíguo “seu”:
é corpo seu norte
forte imantado
braço no escuro
e o lençol leve de culpa
que nula
paira sobre a lama suada
dos corpos amados que tombam
desfeitos
sem mais cais.
Tal citação
poderia nos deixar certos de que se trata de uma lírica amorosa hermética,
lúdica ou pudica. Mas outros versos nos dão uma dimensão maior do ser que divide
o leito, mas sem adjetivá-lo, deslocando para coisas, objetos, que arrastam
ainda mais para longe de um jargão amoroso, tornando o poema um porejar de
experiências com discursos amorosos absolutamente inusuais:
é corpo seu norte
feito corte com faca de cozinha
na parte baixa da língua
onde lambe-se o nome
velho como o mundo
e ele nos engole.
Aparentemente,
um jorro de palavras que não se coadunam
entre si, os versos dizem mais exatamente por isso. Não se trata unicamente de
uma metáfora, ao estilo oswaldiano, mas de uma condensação delas. Vocábulos
aparentemente incongruentes,alojam-se nos lugares certos e sintaticamente
precisos, mesmo quando justapõe palavras diferentes ou até antagônicas numa
mesma função sintática, como se nos compelisse a adentrar o poema, ao tentarmos
decidir o impasse com a escolha de uma única e aparentemente disjuntiva,
semanticamente. Aparentemente, pois o construto poético nos leva a uma
experiência inédita, em que os sentidos se amarram quase todos, ficando fora
unicamente aquilo que nunca se diz: o nome. Apenas se insinua, numa citada
inicial, que parece apontar para a vogal “e”, repetidamente isolada, só, num
inteiro verso. Assim usada, ultrapassa sua função de conjunção aditiva e
torna-se reflexiva, pois funde versos díspares, num processo de condensação
espelhada, em que a superfície irregular do espelho ao mesmo tempo reproduzisse
algumas imagens e distorcesse outras.
Porém não nos
esqueçamos de que a elisão de um nome é justamente enunciada já no início do
poema, que, não apenas nos nega uma imagem de um segundo ser, como também
implica alusivamente ao nome do poema, aparentemente incongruente:
é corpo seu norte
agulha de bússola
aponta o dentro
a fundo e fundo
no fundo que
enfim
é confuso
cheio de rotas curvas
em mapa não dedilhado.
Note-se que a
repetição, apesar de estilisticamente rica, não paira aí unicamente como
enfeite. Um pleonasmo a mais. A agulha
de bússola, transgredindo sua utilidade, não aponta, em verdade, Norte algum,
mas volta-se para o corpo, figura central de busca, e ao invés de sugerir
caminhos viáveis, aponta para o fundo, ou seja, um centro, que não marca um ponto,
mas abre-se para diversas interpretações, ao encontrar rotas curvas, estas em
mapas não dedilhados, ou seja, a percorrer o vazio. O Norte talvez seja o aqui
e agora do encontro, em períodos que se iniciam em minúsculas e terminam em um
ponto. Não haveria aí a menção de uma intensa solidão a dois, em que o Outro se
fixa no corpo físico, enquanto outro se debate em um corpus mental?
Um poema
iniciado em maiúsculas demarca uma autoria e a exposição de uma matéria
completa. Já aquele que irrompe minúsculo, ao invés de negar uma autoria, ainda
a demarca ainda mais, pois denuncia a interceptação de um fio de texto ou de
discurso que pairava solto, ou abruptamente interrompido. Antes da ausência do
texto em maiúsculas nada há, além de uma constelação de ideias de um poeta,
ainda não enunciadas. Ao optar pelas minúsculas, Danilo Barcelos assume
claramente a existência de um texto não dito, que além de demarcar um vazio, desfia ou recolhe uma
ponta solta, aqui e ali, e lhe dá continuidade.
Em “mapear o
norte”, esta voz que emerge de um corte parece-nos, em princípio, pertencer ao
próprio poeta, ou ao seu interlocutor, pois a temática esbarra sempre em um
lírico introspectivo, que, verdadeiramente demarca uma posição. Ali está a
bússola à procura do aparentemente inatingível, pois ao apontar para o fundo,
deixa de possuir a função de indicar caminhos, e se faz simplesmente de um
vazio que mergulha cada vez mais fundo (aliás em um belíssimo pleonasmo
impregnado de assonância) e, ao invés de se transformar em um ponto, abre-se,
alarga-se, já anunciando a intenção da apropriação de um discurso já
pré-existente:
é confuso
cheio de rotas curvas
em mapa não dedilhado
Seguir rotas
curvas e dedilhar mapas desconhecidos torna-se sua tarefa, aliás, bem demarcada
em “mapear o norte”. Trata-se de uma tarefa perigosa, pois impõe sacrifícios e
a vontade extrema de buscar algo que ali não está e nunca esteve:
é corpo seu norte
feito corte com faca de cozinha
na parte baixa da língua
onde lambe-se o nome
velho como o mundo
e ele nos engole.
Não preciso
dizer aqui que todo poeta está em busca incessante de um nome, o Verbo sagrado
que abre todas as possibilidades de atingir a plena potência da arte extrema e
a perfeição estética plena. Os sacrifícios são muitos nessa caminhada, pois
achá-la não depende de buscá-la no mundo, mas no próprio corpo, mutilado , no
sangue que não engolimos, mas é ele que nos engole. Talvez seja uma ligeira
impressão sem valor, mas vale lembrar que “engole” tem semelhança fônica com Golen, que, em forma de palavras, esteve
sempre presente nos mitos criacionistas. Mas estaríamos fechando um texto que,
por um lado, metalinguísticamente, busca a expressão final e perfeita de si
mesma; e por outro, desloca sensações, vocábulos que remetem a um vazio de um
início inexistente (a ausência da maiúscula, mas um ponto final definitivo).
Em “outrem”,
Danilo Barcelos despede-se do fio que conduzia à sua trilha (ou norte) e inicia
o trabalho de entrelaçar (ou melhor, tecer) fios soltos, atar pontos, enlaçar
linhas de modo que elas se transforme em tecido/texto (palavras de mesma
etimologia), ou talvez seja melhor utilizar textura, pois esta remete a algo
mais denso, mais áspero, em seus desenhos em relevo. Nesse ponto, o poeta já
nos inteirou de que a estrada será difícil. Para recuperar um nome antigo é
preciso, não só encontrá-lo no corpo, no corte sob a língua, mas lançar mão de
outros textos interrompidos ou cortados e lhes devolver a voz, ao, com fina
agulha, entretecê-los em uma superfície linguística capaz de ser percorrida
pelos mais diversos discursos. Mas a busca do poema lírico perfeito é trabalhosa
e precisa de que se dispa das velhas enunciações e se busque em laços
inusitados, a ponto de, às vezes, perdermos o pé e nos deixarmos levar, não
somente por uma linguagem inovadora, mas por espessas neblinas de vocábulos que
parecem nada dizer, mas que tomados em conjunto brilham no céu claro e aberto
do papel em branco.”
“Outrem” é o
início de uma viagem verbal. Tendo já escolhido seu norte, o poeta agora exerce
a função do tecelão, que nela busca mais pontas soltas, prenhes de silêncios
sinuosos. O Outro ainda perdura como se, em termos de “eu poético”, a bússola
aponta apenas em direção do ser que faz de seu corpo seu norte. Na disjunção de
seres, o poeta desembarca de um trem ambíguo, que está em movimento no ato, e
parado no outono, ou vice-versa. Este “Outrem”, fora do “eu que enuncia”, que
se evidenciava em pronomes e indícios, agora é falta; um trem do qual se
despede, como um passageiro que se funde com o trem, pelo simples fato de ser
esse, uma metáfora, carregada de componentes líricos, que não carrega chavões,
mas o resultado do da relação de dois seres, da qual um agora se despede:
passageiro de mim desembarco
desse trem só movimento
no outono estacionado pleno em nada.
teço o trilho azul que segue além
ao som de um rio decomposto
coberto de anilina e falsa forma.
Metalinguisticamente,
é a desconfiança no poder evocativo da palavra que se faz sentir, pois o poeta
vacila (mesmo que retoricamente) em retomá-las, num descrer doloroso por
antecipar a ausência de um encontro da essência lírica (busca e decepção de
todo poeta, por sua inexistência) Nos versos seguintes, também, o apear do
comboio se apresenta, como se discurso amoroso e poesia, nesse caso, fossem
atrelados e, portanto, similares. Mas, por um pequeno detalhe, quase insignificante,
isso não acontece: ao final da última estrofe, não há ponto final:
nesta casa
assento os verbos que não sei
e decanto os sons que desconheço
para saciar uma outra sede
que se entende no fim
daquilo que não tento interpretar.
saio, enfim, das palavras
para pisar o solo de mim
chão onde pouso todos os destinos
Sei do risco
que corro, ao propor duas leituras simultâneas, mas creio que devo me atrever,
pois o poema, como O Grito, de Munchen, exige especulações mais fundas, como
aquela úvula imensa e se atrever a vir ao primeiro plano.
Nesse poema, a
úvula se apresenta como ausências, silêncios. Como anteriormente fizera, Danilo
Barcelos forma laços de linhas tão bem tecidos que parecem se fundir.
passageiro e trem formam uma unidade. É preciso descer desse vagão, ao mesmo
tempo em movimento e estacionário, para tecer novos trilhos, que devem se
despedir daquilo que não o levará a nada, ou seja, o artificialismo de um rio
que foi límpido um dia, mas que agora, além de decomposto, ainda traz a falsa
cor, tanto quanto é falsa a forma. Reconhece no trem a peça pulsante de
sentido, mas uma máquina adiada. E vai além:
condenso o trilho azul transpondo a linha
que divide o riscado das palavras
para trazer em mim o mesmo
que perdido já é falta.
na paragem deste trem, som do vazio,
soltam ao ar as folhas deste outono
lugar que marca a ida e desencontros
na constelação contrária de um lago
onde miro o que em mim é outro dia
Trilhos são
palavras, que nada trarão nada a não ser a si mesmos. Neste trecho, com
belíssimos enjambements, coloca-se em um outono sombrio, que ainda tem muito
chão para chegar à plenitude da luz. Mas não é estação de ano de que fala, mas
de um lugar, onde se encontra, onde fios se atam e desatam, mas pela ilusão do
reflexo fazem-no mirar aquilo que ainda não é o agora, mas um dia vindouro.
Como se pode observar, o tecelão já ata e desata imagens e metáforas, mais do
que as lancinantes de Oswald, pois as mesmas em nada se ancoram em um mundo
externo, mas criam nebulosas de sentidos, que nos levam a um movimento de
disjunção da realidade, e nos colocam em algo que é puro discurso, universo pleno
unicamente das palavras que as servem de ancoradouro. Aliás, não seria demais
dizer que o corpo é seu norte, como Bakhtin, coloca na
palavra o peso de aglutinar sentidos.
Isto que até
aqui apresentei é apenas uma das possíveis leituras de um poema que, mais do
que obra aberta, é um texto construído com a lógica de um processo de tessitura
de inúmeros fios a se enredar; por isso, cada laço em sua face representa
também uma nova entrada de leitura, especialmente a partir de discursos
diferentes de diferentes leitores.
Certamente,
para a maioria dos leitores, é corpo seu
norte, já pela abertura que lhe dá o título, o lerá como lírica amorosa.
Trata-se também de uma leitura das mais interessantes, pois, se formos somente por
este caminho, teremos de fazer uma demonstração de como Danilo Barcelos
desconstrói o a linguagem típica de textos desta natureza. Absolutamente isento
de chavões, apenas espalha aqui e ali algumas aberturas, tais quais o
direcionamento do Eu Poético para um Outro, por meio de uso discreto e parco de
pronomes. Em nenhum momento, o amor se manifesta claramente como temática do poema.
Este apenas perpassa os diversos fios enredados, mais como uma relação a dois,
da qual se precisa desembarcar, mas aponta sempre e necessariamente para um
discurso em que o Eu prevalece, colocando-se única e inteiramente no poema,
mesmo quando acena para lençóis amarfanhados, que, por si sós, não consideram a
presença desse Outro. O corpo a que se refere não se acha relacionado a um
pertencimento, a não ser o pronome “seu”. Os sentimentos que poderiam aflorar
nos versos, de forma mais clara, jamais aparecem; em seu lugar, metáforas
magníficas e apenas evocativas de possibilidades de leituras tomam o lugar de
um expresso discurso amoroso.
Os versos que
se seguem, são sóbrios semanticamente. Somente em pequenas coisas se percebe
laivos de ressentimento, especialmente quando trata da casa como unicamente
sua, sem qualquer presença, sequer de lembranças, já que ela só emerge no poema
após “alicerces”. Há um novo espaço ali construído, alinhavado peça por peça
pela evocação de um mundo externo, até então ausente. Aí há dor, mas contida,
como contido era, quando o conheci há tantos anos.
Porém o maior
sinal de contenção reside no ponto final ausente, que nos deixa a esperar mais.
Não, o poeta não abandonará as palavras, apenas aponta para um novo rumo, em
que o social também se trance habilmente numa superfície textual, por sobre a
qual perpassem inúmeros discursos, não só com a maestria de quem sabe fazer,
mas também com a ânsia de quem se renova, sem pirotecnias visuais, ou a
estraçalhar o texto em avanços e recuos em nada significativos.
Todavia, tal
leitura é plenamente possível, o que coloca o poeta em um patamar ainda mais
alto, pois desloca de maneira absoluta e radical o tratamento dado ao “amor” na
lírica brasileira, pois o objeto amoroso jamais se apresenta de forma clara e
direta. E ainda menos pelo jargão sentimental daqueles que entendem “coração”
como algo mais que vísceras. Este, sequer é aventado no início do poema, no
qual a lírica amorosa mais se coloca. Fala-se de corpo, forma portuguesa de corpus que nos dias de hoje tomou o
sentido de uma escolha, de um recorte.
é corpo seu
norte
forte imantado
braço no escuro
e o lençol leve de culpa
que nula
paira sobre a lama suada
dos corpos amados que tombam
desfeitos
sem mais cais.
Apesar da insistência da crítica em ver
antropofagia em toda a produção recente de boa qualidade, não a vejo em Danilo
Barcelos, nem em outros citados. Aliás, afora momentos como o de 22, o
Experimentalismo e a Tropicália, não consigo identificar claramente o que seja
realmente tal antropofagia, mormente minha formação acadêmica. Já, desde o
romantismo, temos acompanhado um processo de disjunção entre a Literatura
Brasileira e outras, iniciado este com José de Alencar e sua escrita
metonímica, e Machado, com suas experiências de tipógrafo. São dois séculos de
experiências diversas e um processo de miscigenação que cria algo nem coisa,
nem outra; mas algo novo.
Nossas recaídas aos modelos externos estão quase
sempre relacionados a momentos em que as elites sócio-econômicas, coincidem com
as elites culturais. Um grupo com tal perfil tem por costume mesclar sua origem
latino-americana a uma experiência europeia, talvez numa demonstração de finesse.
Mas novos poetas, como Danilo Barcelos, não possuem
tais características. A vivência brasileira é plena, carregada de muros,
aberturas, fragmentos, discursos múltiplos: ou seja, esse viver o Brasil não os
faz nem antropófagos, nem nacionalistas ingênuos; mas intelectuais capazes de
fazer da diferença um enorme depósito de novas propostas. Assim vemos é corpo seu norte.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Do Livro O Centro do Círculo
Aos Infernos
Desço mais um passo, Beatriz,
em direção ao nada. Na treva
a única luz que vejo são as imagens
que se partem em fragmentos hostis,
com farpas, espinhos e voragens,
que seguem a torrente que me leva.
Já vislumbro o barqueiro sombrio,
à espera, com os remos aos ombros,
enquanto alucino passados de brilhos,
flocos leves, efêmeros, entre escombros.
Estranho passageiro sou. No úmido frio
da cratera em que entro ouço ainda estribilhos.
São ecos, talvez, do passado, d'antanho,
em que a dor se assemelhava à alegria
e o canto feliz de então, agora parece
lamento e angústia, lamento tamanho,
que a memória turva me envia
para alentar algum resto, aquele que perece.
Entre os dedos carrego a moeda,
cunhada com o metal da indiferença.
Pagamento mesquinho, para a travessia
tão esperada, ansiada após a queda
nas sombras vazias, sem esperança,
nem mesmo de um beijo em lápide fria.
Beatriz, ouço Cérbero já furioso
com a lenta caminhada, após o desembarque
titubeante. Falta-me a coragem, ou esperança
de recuperar, mesmo que ansioso,
o brilho de um olhar vacilante,
ou o falso amor de uma velha criança.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
O nariz de um homem ridículo
O nariz de um homem ridículo
Para Aníbal Machado
(...) deixou
cair os braços, começou a esfregar os olhos e a palpar: um nariz, realmente um
nariz! E ainda por cima pareceu-lhe não de todo estranho. O horror se refletiu
no rosto ... (Nicolai Gógol)
Decepar
uma parte de si mesmo? Sem dúvida era uma decisão drástica para quem vivera até
então acomodado a sua vidinha sem graça e ao corpo mirrado. Nunca lhe
incomodaram os ombros curvos e estreitos, a calvície precoce, nem as pernas
finas a sustentar um tronco insignificante. Ele sabia a razão de sua
inquietação. Atravessou a sala e olhou para o parque, em desalinho, carregado
de folhar murchas e putrefatas. Fora seu último dia de trabalho. Explicara aos
colegas que havia recebido uma herança deixada por uma tia quase esquecida.
Embora modesta, lhe daria os rendimentos para uma aposentadoria humilde. A
mentira o incomodava, era inexperiente na arte de mentir. Mas tinha que dar uma
explicação aos colegas. Um funcionariozinho subalterno, sem grandes qualificações,
surrado em seu velho terno de todos os dias, não podia se dar ao luxo de pedir
demissão assim tão repentinamente numa época de desemprego. Mas era impossível
contar-lhes a verdade: não suportava mais os olhos se outros sobre seu nariz.
Até
então, sequer notara aquele apêndice enorme se sobressaindo em meio aos olhos
miúdos e meio opacos. Ao fazer a barba,
porém (lembra bem o dia!) deparara com aquela excrescência obliterando-lhe o
olhar de soslaio. Desde então, não passava um minuto sem notar a ponta rotunda
de seu protuberante nariz.
Na
rua, não se misturava mais à massa anônima como antes. Se, até ali, a multidão
era um jardim perfeito pelo qual atravessava seguro e inócuo, agora, naquele
último mês, sentia a sensação perversa e estranha de ser observado a cada
passo. De qualquer maneira levaria a cabo sua intenção fosse qual fosse o
preço. A força desta convicção deixava-o
intrigado; a decisão era inabalável, mas sua mente inquisidora não atinava para
uma justificação razoável para o ato.
Fora
de casa, não levava mais seu corpo, mas era carregado pela imensa protuberância
nasal, sempre mais à frente, como uma trombeta do apocalipse. Na praia, senti-o
queimar-se, avermelhar-se e, aos poucos, tomar todas as cores de seu torso, não
somente do rosto, que se amiudava ainda mais.
Deixou
a barba crescer, mas o matagal inóspito e rebelde em nada contribuía para sua aparência.
Pelo contrário, o bigode ralo e negro ressaltava ainda mais o órgão estranho,
frisava os nódulos desarmoniosos e avivava as espinhas que não cessavam de
brotar por toda parte, como se o estúpido ainda quisesse crescer um pouco mais.
Cortou a barba, mas não o ressentimento.
Passou
a faltar ao serviço, e quando batia o ponto trancava-se num mutismo sombrio. Na
tela do computador via sempre o reflexo refletido. Lá estava seu inimigo, seu
algoz, que agora não apenas se mostrava, mas parecia adquirir vida. Em
fungadelas e espirros, esforçava-se para esboçar um sorriso irônico pelas
narinas.
Seria,
talvez, que depois de quase 40 anos de vida precisava provar a si mesmo, um
borra-botas, que ele era alguém; que era capaz de ter coragem e decisão,
cometendo um ato tão terrível e irrevogável. Apanhou a faca.
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